• Hoje eu fiquei com vergonha alheia. O TJE-PA absolveu o médico, empresário e ex-deputado Luiz Afonso Sefer de ter estuprado uma criancinha de 9 anos, durante quatro anos seguidos, em sua própria casa. Pior: quem assistiu à sessão teve a sensação de que a menina é que foi culpada por todo o horror que sofreu, sozinha, sem amparo da família, de ninguém, muito menos do Estado e do Judiciário. A procuradora de Justiça que representou o MP foi meramente protocolar, sequer se deu ao trabalho de fazer sustentação oral, preferindo dizer que tudo já estava nos autos e entregou todo o tempo para o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos que, a peso de ouro – para ciúme dos defensores locais, correu à boca pequena no Fórum que Sefer pagou-lhe honorários de R$6 milhões – deitou e rolou para a plateia.
• Sefer foi condenado pela juíza Maria das Graças Alfaia Fonseca, titular da Vara Penal de Crimes Contra Crianças e Adolescentes de Belém, em 6 de junho de 2010, a 21 anos de prisão, mas hoje o algoz da menor S. B. G. foi absolvido. O relator da apelação penal, desembargador João Maroja, acolheu o argumento da defesa de – vejam só! - insuficiência de provas, apesar do farto material probante, com detalhes medonhos, atrozes, que levam às lágrimas qualquer ser humano com um mínimo de sensibilidade. O revisor, desembargador Raimundo Holanda, acompanhou seu voto. O juiz convocado Altemar da Silva Paes foi o único a divergir, votando pela manutenção da condenação. E fez questão de dizer que não violentaria sua consciência. Bravo, professor! O senhor foi voto vencido mas fez sua parte para a aplicação da Justiça, com J maiúsculo.
• Segundo a denúncia do Ministério Público, confirmada pela sentença em 1º Grau, em meados de 2005 Sefer trouxe para Belém, do município de Mocajuba, para ser companhia de sua filha - que à época já era adolescente e nem morava com ele (!) - uma criança de 9 anos. E abusou sexualmente dela desde os primeiros dias, além de torturá-la física e psicologicamente.
• Hoje, dois dos três membros da a 3ª Câmara Criminal Isolada adotaram a tese da defesa de que a palavra da ofendida seria prova insuficiente para a condenação, que o acusado não tinha perfil psicológico de abusador e que não havia precisão sobre o período e nem a quantidade de vezes em que o abuso teria sido praticado (!).
• O relator acolheu todos os argumentos, e ainda destacou que o núcleo das acusações residia apenas no depoimento da vítima. Mais: invocando o princípio do "in dubio pro reo", preferiu inocentar o acusado, sendo acompanhado pelo desembargador revisor.
• A Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Constituição Federal – ancoradas em séculos de lutas vitoriosas em busca de seu reconhecimento - preveem que todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção. Esse princípio forçosamente deve ser aplicado com o da proporcionalidade, a fim de que seja eficaz. Assim, têm que ser levadas em conta as diferenças e desproporções da vida e as injustiças que fatalmente resultam do mesmo tratamento a desiguais. Todo homem - e mulher, e criança - tem direito a receber dos tribunais remédio efetivo para os atos que violem direitos fundamentais.
• Alguém duvida de que Luiz Afonso Sefer foi presumido inocente até sua culpabilidade ter sido provada de acordo com a lei, em julgamento no qual lhe foram asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa, no devido processo legal?
• E à criança violentada e torturada, foi assegurado o pleno acesso à Justiça? O mestre Norberto Bobbio, com muita propriedade, não raro leciona que fala-se muito de direitos do homem, entre eruditos, filósofos, juristas, sociólogos e políticos, muito mais do que de fato foi feito até agora para que eles sejam efetivamente reconhecidos e protegidos, e deixem de ser aspirações – nobres, mas vagas -, exigências – justas, mas débeis – e virem direitos propriamente ditos (no sentido de sua implementação nos tribunais, como se viu hoje no TJE-PA).
• Além de ter que repetir sucessivamente ao longo do inquérito e da ação penal os detalhes sórdidos do estupro continuado a que foi submetida – o que por si só representa novas violências - a vítima de Sefer, sem luzes a não ser aquelas natas, sem apoio familiar, sem poder pagar advogado, foi repetida e publicamente violentada em sua honra, enxovalhada de todos os modos, exposta de modo aviltante, submetida a um circo de horrores que só prolongou e intensificou a grande noite de sua infância roubada.
• Essa menina – miseravelmente pobre, maltratada, indefesa, demandando um homem rico e poderoso, com fortes ligações políticas - obteve a prestação jurisdicional imprescindível?
• Ora, a palavra da vítima, em sede de crime sexual, é de vital importância, revestida de especial valor probatório, principalmente pelas circunstâncias clandestinas em que é perpetrado, e só pode ser desprestigiada com a produção de provas cabais a demonstrar a falácia de suas declarações. O que absolutamente não aconteceu no caso Sefer.
• Quem diz isto não sou eu, é o Supremo Tribunal Federal, cuja orientação expressa é a condenação baseada somente na palavra da vítima ante a inexistência da materialidade da infração e de testemunhas, quase impossível nesses casos.
• Muitas mulheres, vítimas de violência sexual, preferem se calar a procurar a autoridade policial ou judiciária em busca de providências. Boa parte delas acredita que, como o estupro não foi presenciado, ou que a violência não deixou marca no corpo, será impossível prender o criminoso. O resultado do julgamento de hoje só confirma esses justos receios.
• O Ministério Público tem o dever de recorrer. Espera-se que na próxima vez pelo menos designe representante que conheça o processo (a procuradora do Parquet nem se incomodou de dizer à imprensa que a peça que não sustentou era da lavra de outra colega, e que desconhecia os termos acusatórios!). Uma vergonha para o órgão que tem a obrigação de fazer valer a lei. Ou pelo menos usar de todos os seus meios para esse fim.
• E dos membros do Judiciário – a esperança sempre há de existir – que cumpra seu dever constitucional e a finalidade para a qual os princípios foram elaborados e o poder instituído. (Franssinete Florenzano, jornalista, Grupo Paraense)
"Quando se apresente uma ameaça, se for possível a evito. Se for impossível, enfrento-a e luto com tudo o que tenho. Preocupar-se é perder tempo." (R.Bach)
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