19 de jan. de 2006

Os mil martírios de São Sebastião

Kishin Shinoyama, Yukio Mishima, 1968/Courtesia: Kishin ShinoyamaExposição em Viena reúne quadros, filmes, fotos e instalações com representações do santo

Ícone sado-masô, dândi andrógino, guerreiro ambíguo, mártir enamorado da morte, a encarnação mesma do sofrimento exemplar do artista. Assim ele é apresentado no Kunsthalle Wien, em plena Museumplatz (Viena, Áustria), em exposição até 15 de fevereiro de 2004: “São Sebastião - Uma Esplêndida Prontidão para a Morte”.Mix de vamp e narciso, cabra arretado e arremetido para morrer, o “patrono de soldados, homossexuais e pessoas que sofrem de pestes” serve de emblema para uma batalha de rebeldia, censura e fé sublinhada por um mito que chegou ao século 20 demarcando a curva “entre a secularização do sagrado e a elevação do profano em sagrado” (Joachim Heusinger von Waldegg).

Na exposição, curada por Wolfgang Fetz e Gerald Matt, o mito é abordado a partir da moldura da arte contemporânea, mas sob o foco de pontos históricos, como o do “pintor dos pintores de São Sebastião”, Guido Reni -aquele que moldou seu retrato matriz de modo ambíguo (jovem anêmico, lânguido e letárgico, que dissimula o gozo tilintando na dor).

A representação, “do excesso barroco à austeridade estética” (Matt), inclui os artistas: Ron Athey, Stephan Balkenhol, Louise Bourgeois, Chris Burden, Bavo Defurne, Kirby Dick / Bob Flanagan, Cerith Wyn Evans,Eikoh Hosoe, Derek Jarman, Sigalit Landau, Adi Nes, Luigi Ontani, Ana Maria Pacheco, Pier Paolo Pasolini, Paul Schrader, Kishin Shinoyama, Wolfgang Tillmans, Robert Wilson, Joel-Peter Witkin, David Wojnarowicz e Rona Yefman, além de uma obra anônima “à moda de” Guido Reni, pintada a óleo no século 18/19.

Outras imagens interessantes não estão expostas, mas constam das páginas do bom catálogo editado por ocasião da mostra (“Heiliger Sebastian - A Splendid Readiness for Death”, org.: Wolfgang Fetz e Gerald Matt, ed. Kunsthalle Wien/ Kerber Verlag, 28 euros). Substancioso complemento à exposição, o catálogo exibe obras como “Auto / Retrato como São Sebastião”, de Egon Schiele (1915), “St. Sebastian Poster”, de Keith Haring, e “Veado Ferido ou o Pequeno Cervo”, de Frida Kahlo (1946).

Além das ricas ilustrações, o catálogo (com versões em inglês e alemão) traz textos de artistas e ensaios teóricos, como “Saint Sebastian: On the Uses of Decadence” (Richard A Kaye), “Saint Sebastian. Love, Death and Paradise” (Wolfgang Fetz), “The Icon of Male Vulnerability” (Germaine Greer) e “Sain Sebastian - A Journey to the Centre of the Pain, or: ‘If You Love Me, Kill Me!’” (Gerald Matt).

Para o curador Gerald Matt, “Sebastião é um projeto polimorfo de obsessões e vícios humanos, desenhando um rastro de dor através de séculos da história da arte, de Guido Reni a Keith Haring. Mesmo hoje é ainda o objeto de vouyeurismo e identificação para as pessoas que precisam de um ser perfeito esteticamente de modo a transcender seu desgosto com o mundo. Sebastião vale uma viagem”.

O outro curador da mostra, Wolfgang Fetz, diz: “É precisamente na ligação com o proibido, o caído em ostracismo, que o poder magnético da estética é revelado; a estética não se torna mal, mas o mal torna-se estética. No caso de Sebastião, o escândalo, o mal, está na ofensiva, enredo esquizofrênico de sentimento religioso e ritual sadomasoquista sob a bandeira do esteticismo”.

Sobre este mártir pouco mais que justamente seu martírio pode ser provado. No “Depositio Martyrum”, de 354, menciona-se que Sebastião foi enterrado na Via Appia. Santo Ambrósioe (salmo CXVIII, sermão XX) declara que ele veio de Milão e na época já o veneravam. No início do século V, documentos (erroneamente atribuídos a Ambrósio) relatavam que Sebastião foi um oficial na escolta imperial e que cometera secretamente muitos atos de amor e caridade em relação a seus irmãos de fé. Quando, em 286, finalmente descobriram que era um cristão, Sebastião foi entregue aos arqueiros mauritanos, que o perfuraram de flechas.

Porém, ele foi curado por Santa Irene. Antes de ser definitivamente morto a golpes de bastão. Tais histórias não são tidas como dignas de crença. A pintura em mosaico mais antiga de São Sebastião parece datar de 682 e o retrata como um homem maduro, com barba e em roupas da corte, sem traços de setas. Foi a Renascença que primeiro o retratou como um jovem perfurado por flechas. Em 367, sobre uma das sete principais igrejas de Roma, foi construída uma basílica no lugar de sua sepultura. Em 826, seus restos e relíquias foram levados em parte para St. Medard, em Soissons, França).

O complexo calvário de santas heresias encapsulado por São Sebastião deve ter começado com a imagem criada por Fra Bartolomeo (1473-1517), pintor italiano da escola de Florença, “especializado” em temas religiosos. Sua pintura em afresco sobre o mártir foi retirada das paredes da igreja pelos monges, sob a “acusação” de que era fonte de pensamentos pecaminosos durante as confissões das mulheres e induziam fiéis a devaneios eróticos.

Salto para o começo da década de 10 do século 20, quando as vanguardas européias cultuavam seus ritos iconoclastas. A estréia da ópera “Le Martyre de Saint Sébastien”, de Gabriele D'Annunzio e Claude Debussy, foi um escândalo no teatro do Chatêlet (Paris, 1911), porque, além dos paralelos entre o martírio e o semideus Adonis, das relações incestuosas entre mitos e símbolos, o santo cristão era interpretado por uma mulher e, ainda mais, russa e judia (Ida Rubinstein).

O arcebispo ameaçou de excomunhão quem assistisse a peça que seria reencenada em 1988 pela luz ascéstica de Robert Wilson, na Ópera Nacional de Paris, e em 2001 pelo anáquico grand-guignol de La Fura dels Baus. A exposição registra, na sala e no catálogo, o livro de D’Annunzio (“O Martírio de São Sebastião”); os desenhos criados para o cenário por Léon Bakst entre 1909 e 1911; fotos, cenários e planos de Robert Wilson e o programa de sua versão. O catálogo traz ainda o texto “Léon Bakst, stage designer for the première of ‘The Martyrdom of Saint Sebastian’ by Gabriele D’Annunzio”, de Carlo Santoli.

Para Fetz, “o princípio da guerrilha estética, a certeza das próprias asserções, ao ofensiva e estrategicamente passar por cima de dogmas categóricos, penetram a estrutura do ‘Martyre’ em suas fibras mais profundas”.

Escreve o curador: “A ópera forma uma densa rede de constelações ‘proibidas’: o italiano D’Annunzio escrevendo em francês; o francês Debussy compondo no estilo de Palestrina, com toques de música árabe e japonesa; a mulher (judia) representando um homem (cristão); a ferida da flecha na carne é a fenda de uma vagina; Cristo como um dandy pagão etc. O corpo de Sebastião funciona como o ponto focal de códigos (aparentemente) incompatíveis, ele é um gigolô cultural: a ‘perigosa’ retórica da obra pode ser entendida como um paradigma para intuição excêntrica”.

Se Salvador Dali costumava assinar, ao redor de 1927, sua cartas para Garcia Lorca como São Sebastião (quando Lorca desenhou um São Sebastião), D’Annunzio chegou a pedir para sua amiga Olga Assani para amarrá-lo nu a uma árvore no jardim da Villa Medici, dando à sua obsessão por São Sebastião contornos com seu próprio corpo (mais tarde, o escritor italiano lavraria estas palavras no console da lareira em sua Villa La Capponcina: “Et quid volo nisi ardeat” (e o que mais posso eu querer do que arder em chamas?).

Não foi apenas a pintura que moldou a imagem de São Sebastião; a literatura também construiu sua figura no imaginário da cultura: Sebastião, com “o olhar apaixonado, divino” (Oscar Wilde), “exausto pela quase imensa voluptuosidade e desamparo de sua agonia” (Marguerite Yourcenar), a representação da “Luxúria do Declínio”, “o mais belo símbolo” (Thomas Mann).

Uma das configurações mais impactantes para o imaginário contemporâneo em referência a São Sebastião foi a que o escritor japonês e esteta excêntrico Yukio Mishima interpretou para as lentes de dois fotógrafos japoneses. Eikoh Hosoe e Kishin Shinoyama, com as respectivas séries “Morto por Rosas” (ou “Ordálio por Rosas”) e “Morte de um Homem”, fizeram de Mishima -que se deixou fazer- imagem/personagem central para o culto a Sebastião que se projetaria na segunda metade do século 20.

Em seu romance autobiográfico “Confissão de uma Máscara”, Mishima descreve a experiência de sua (auto) descoberta para o desabrochar homossexual. Foi enquanto examinava num livro a reprodução de Sebastião pintado por Reni: “As setas tinham perfurado a tesa e tenra carne jovem, consumindo o corpo desde dentro com torturas de extrema agonia e derradeiro êxtase”.

Após fracassar no assalto ao quartel-general das Forças Armadas e demonstrar solene expressão de lealdade ao imperador, Mishima cometeu suicídio pelo gume do Seppuku (a forma mais dolorosa de morrer, prova ilimitada e indefensável da coragem de um samurai). O crítico Joel Black escreveu: “Para Mishima, o suicídio ritual foi o momento catártico de transcendência, por excelência, algo que ele repetidamente ensaiou em suas descrições literárias e atuações cinematográficas. Mas ele também ensaiou privadamente em suas ‘petites morts’ orgasmáticas sobre as quais tal suicídio foi definitivamente moldado”.

Conclui Black: “Pouco antes de sua morte, Mishima referia-se ao harakiri como a ‘última e definitiva masturbação’. Em seus textos, ele adotava a idéia de morte erotizada e a forma de sacrifício ritualizado de modo todo próprio, mais notadamente como o motivo homoerótico da torturante morte de uma juventude bela. Ele descreve seu fascínio com esse tema no autobiográfico ‘Confissões de uma Máscara’, explicando que tudo se originou com sua descoberta como um ‘garoto desejável’ ao ver uma reprodução da pintura de São Sebastião por Guido Reni” (imagem reencenada no filme de Schrader).

As fotos de Hosoe, seis das quais reproduzidas no catálogo da exposição, mostram Mishima em várias poses: com óculos escuros e jeans, sem camisa, cheirando uma rosa, com a imagem sobreposta a uma pintura de São Sebastião (“Ba ra kei # 25”, 1962); corpo nu, só de sunga branca e com rosa servindo de gravata no pescoço, numa escada (“Ba ra kei # 1”, 1961); corpo nu, só de sunga preta, encostado numa árvore pintada de cenário (“Ba ra kei # 34”, 1961); deitado nu numa relva de rosas, com o corpo desmembrado pela fotomontagem (“Ba ra kei # 15”, 1961); agachado com sua imagem sobreposta aos pés de São Sebastião encostado numa árvore e com o rosto de Sebastião sobreposto a um relógio (“Ba ra kei # 29”, 1962); rosto de Mishima em close, cheirando uma rosa, mas olhando fixo a câmera (“Ba ra kei # 32”, 1961).

No prefácio do livro “Ordálio por Rosas” (sobre tal série de fotos), Mishima escreveu: “Diante da câmera de Hosoe, eu logo percebi que meu próprio espírito, o funcionamento de minha mente, tinham se tornado totalmente redundantes. Foi uma experiência estimulante, um estado de aventuras amorosas com o qual eu tinha sonhado há muito tempo”.

No catálogo da mostra, Hosoe escreve: “O tema da série é ‘vida e morte’, e pensei que poderia representá-lo apenas através da carne de Mishima. Ele foi muitíssimo generoso em permitir que um jovem fotógrafo perseguisse sua ambição. Dedico essas ‘reproduções em platina’ a Yukio Mishima, um homem que nunca permitiu sua própria decadência física. Hoje, servem como um registro permanente de sua beleza imortal, esplendorosa no auge de seus 38 anos”.

As fotos de Shinoyama, quatro das quais reproduzidas no catálogo da exposição, mostram Mishima em outras poses, igualmente ícones: amarrado a uma árvore, ferido por três flechas (axila, fígado, colo), sangue escorrendo pelo corpo, luzes entre os galhos ao fundo (“Mishima Yukio”, 1968); como um musculoso samurai empunhando bravamente uma espada (“Mishima Yukio”, 1969); deitado nu, numa pedra, banhado pelas espumas do mar, estirado, com a cabeça jogada para trás (“Mishima Yukio”, 1970); fardado, quase anônimo em meio ao seu exército de uniforme, soldados posados como num palco sob a nuvem artificial (“Mishima Yukio + Tate No Kai”, 1970).

A imagem do dândi masô-marcial japonês também brilha no Kunsthalle Wien com a exibição contínua (em DVD) do filme de Paul Schrader, “Mishima” (1985). Dividido em quatro capítulos -“Beleza”, “Arte”, “Ação”, “A Harmonia da Pena e Espada”-, o filme do agnóstico (e bressoniano) diretor americano roda o último dia de Mishima em cores realistas e o passado em preto & branco, explorando o esplendor do autor em sua crença mórbida sobre as complexas relações entre vida, beleza e morte. As primeiras três seções contêm coloridas condensações dos romances “O Templo do Pavilhão Dourado”, “A Casa de Kyoko” e “Cavalos em Fuga”.

(Cortesia de Carlos Adriano)

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