10 de nov. de 2007

Está bom demais no Brasil

''Para o Brasil está bom demais'' - discurso feito no dia 05/11/2007

Sr. Presidente,
Srs. Senadores presentes.

Tem circulado nesses últimos dias, pelo menos chegou para mim pela Internet, uma frase de apoiadores do Governo, Senador Sibá, dizendo que para o Brasil já está bom demais. A idéia é de que, para o Brasil, o Governo Lula já está bom demais. Volto a insistir no que tenho dito aqui, de que quando comparamos o Presidente Lula com os que vieram antes dele não tenho a menor dúvida em dizer que, se não for o melhor, é um dos melhores. Agora, dizer que está bom para o Brasil é reconhecer que o Brasil não merece, não tem condições de dar um salto muito maior. Essa é a tristeza que tenho, de todos os meus amigos, companheiros do que a gente chama de esquerda, pelo acomodamento em que a gente caiu e que é uma tradição neste país.

Para o Brasil estava bom demais, desde quando a gente começou. Quando a gente começou, diferentemente dos outros países da América Latina, fizemos a independência e colocamos como chefe de estado o filho do rei do país que a gente queria se libertar e assumimos um imperador. Para o Brasil estava bom demais.

Os outros países fizeram suas repúblicas, elegeram alguém local. A gente colocou o filho do rei, mas para o Brasil estava bom demais. Passou o tempo e a gente insistiu com a escravidão, até que um dia fez a Lei do Vente Livre que permitia que o filho de uma escrava – que não tinha sido comprado, portanto – não seria escravo. Se até ele chegar aos 21 anos, nenhum parente da família fugisse. E só ficaria livre aos 20 anos, mas para o Brasil estava bom demais. Os outros países todos já haviam abolido a escravidão, até a Rússia tinha abolido o sistema servil. Para o Brasil o Ventre Livre estava bom demais.

O tempo passou e a gente fez a Lei dos Sexagenários – 60 anos, não dava mais para trabalhar no corte de cana-de-açúcar, na colheita de café. Fizemos a Abolição da Escravatura alguns anos depois. Mas, fizemos a abolição sem dar escola aos filhos, sem dar terra aos ex-escravos, mas para o Brasil estava bom demais. Para outro país não, para outro país, sim, os escravos deveriam receber terras, a reforma agrária deveria ser feita, os filhos deles teriam escolas. Para o Brasil não. Para o Brasil estava bom demais.

Aí a gente fez uma República, mas uma República em que 65% da população era de analfabetos, e a gente fez uma bandeira escrevendo nela um texto, que, portanto, 65% não eram capazes de reconhecer; uma bandeira que não era de todos, mas para o Brasil estava bom demais, como diz esse slogan que está correndo a Internet nesses últimos dias, segundo eu soube, tendo origem em São Carlos, São Paulo.

Estava bom demais uma bandeira apenas para 35% da população.

E a República continuou dividindo o Brasil entre uma elite privilegiada e uma massa excluída, mas para o Brasil estava bom demais.

Os outros países tomaram suas medidas para integrar a população em um só povo. O Brasil continua sendo uma República com dois povos, até porque a gente chama um de povo e o outro de povão. É um dos raros idiomas em que há duas palavras para dizer a palavra povo. A Índia com suas castas tem diversas palavras, mas eles não falam povo, falam as castas diferentes. Nós, a aristocracia, branca, e os escravos. Quando veio a República não dava mais para colocar dessa forma, inventaram a expressão povão. Mas para o Brasil está bom demais.

E a gente achou que não dava para continuar para sempre com uma sociedade rural, uma sociedade apenas exportadora e fez uma industrialização 40 anos depois da República, mas para o Brasil estava bom demais; 40 anos de uma sociedade apenas rural, exportadora, baseada em latifúndios. Mas então nós fizemos a industrialização, uma industrialização que não dividiu o produto, uma industrialização, que, ao contrário, precisou concentrar a renda para criar demanda para os automóveis e produtos de luxo que nós produzíamos, porque se houvesse uma boa distribuição de renda, não iríamos conseguir vender os produtos que a indústria brasileira produz. Mas para o Brasil estava bom demais, porque já era o desenvolvimento econômico. Nós passamos a ser a oitava potência em alguns momentos do mundo na economia e uma das últimas em condições sociais. Mas para o Brasil estava bom demais.

Aí somos um País riquíssimo, mas com a maior concentração de renda do planeta. Para o Brasil está bom demais. Vem um programa que consegue distribuir um pouquinho dessa renda, e distribui $60,00 por mês; faz com que alguns saiam de renda zero para alguma renda, passem a comer e ninguém pode dizer que isso é um salto. Mas só no Brasil é que a gente diz que isso tá bom para o Brasil.

Nenhum outro lugar se satisfaria com uma realidade em que gente consegue dizer que saiu da pobreza quem passou de uma renda zero para R$60,00 por mês. Ou de uma renda R$ 60,00 para R$ 120,00 por mês. Nenhum lugar diz que isso é sair da pobreza, Senador Pedro Simon, porque sair da pobreza é dar escola para os seus filhos, com qualidade; sair da pobreza é ter um sistema de assistência social; é ter onde morar, ter água, ter saneamento, não é ter renda. Para que a renda lhe permita sair da pobreza, você tem de ganhar na loteria e ficar rico. O que tira da pobreza é o acesso aos bens reais, aos bens e serviços, Senador Pedro Simon. Mas, para o Brasil, está bom demais!

Dizemos que aqui a educação foi ruim. Aí se comemora que hoje 97% das crianças estão matriculadas. Veja bem! Só no Brasil é que dizemos que está bom demais. Dizer que 97% das crianças estão matriculadas significa dizer que 3% delas não estão. Mas no Brasil está bom demais! Ter 3% que não entram na escola está bom demais, para o Brasil!

Agora, não se analisa que, desses 97%, a imensa maioria vai à escola só para comer, Senador Mozarildo, vai lá pela merenda, não vai pela escola. A escola é um restaurante mirim popular. Ficam apenas duas horas na escola. Mas, para o Brasil, está bom demais! A gente já tem 97% das crianças matriculadas e com merenda. Para o Brasil, está bom demais!

Aqueles que ficam um pouco mais na escola, além da merenda, não freqüentam todos os dias, e quando freqüentam todos os dias, não freqüentam todos os meses. Quando chega o final do ano, os poucos que chegam não aprenderam a ler, mesmo na quarta série primária. Mas, para o Brasil, está bom demais! Chegaram à quarta série primária e não sabem ler, mas já chegaram ali. Para o Brasil, está bom demais!

É isso que está nos destruindo, essa sensação de que, para o Brasil, está bom demais, que não temos o direito de sonhar além disso. Que 97% é matriculado, mesmo que não freqüente; mesmo que frequentando, não assista; mesmo que assistindo, não estude; mesmo estudando, não aprenda. Mas, para o Brasil, ter 97% matriculado, está bom demais! É isso que está nos destruindo, a falta de querer ir além daquilo que consideramos estar bom demais.

E a democracia? A democracia está boa demais! Uma democracia em que esta Casa funciona na base de medidas provisórias vindas do Governo e medidas liminares vindas da Justiça, sem nenhum poder. Não vamos nos enganar. Não estamos ficando inoperantes, estamos ficando irrelevantes no processo democrático brasileiro. Mas, está bom demais! E nos reunimos dois dias por semana. Para o Brasil, está bom demais! Porque pelo menos não está fechado o Congresso, como ficou durante alguns anos em mais de um período da República.

Essa sensação de que, para o Brasil, está bom demais é que está nos destruindo. Por exemplo: na questão ecológica. Claro que estamos desmatando menos hoje do que antes. Mas será que dá para a gente dizer que está bom demais desmatar só uma Bélgica em vez de duas Bélgicas a cada tanto tempo? Será que a gente não é capaz de ter a ambição de parar isso de uma maneira mais radical, mais forte, mais firme? Não! Para o Brasil, está bom demais! Conseguimos reduzir a taxa como o desmatamento era dado. E é verdade. Mas não está bom demais. Vamos pedir desculpas porque ainda estamos desmatando.

Mas não está bom demais. Vamos pedir desculpas porque ainda estamos desmatando?! A gente não pede desculpas, porque no Brasil está bom demais. A gente pede desculpas quando aquilo que acontece é aquilo com que não estamos satisfeitos. Agora, mesmo aquele mal que a gente tolera porque, para o Brasil está bom demais, a gente não pede desculpas, a gente comemora. Dia após dia, a gente comemora, ano após ano, a gente comemora neste País avanços insignificantes, deixando o Brasil para trás em relação aos outros países. Mas, para o Brasil, está bom demais.

Avançamos um pouquinho. Nossa taxa de analfabetismo claro que caiu, ao longo desses 120 anos da República, de 65% para 13%. Mas o número de analfabetos mais que dobrou nesse período. 65%, naquela época, eram seis milhões. Hoje, os 13% são 14, 15 milhões. Mas, para o Brasil, está bom demais, porque diminuiu a taxa, mesmo que tenha aumentado o número absoluto.

Essa sensação, Senador Pedro Simon, de que está bom emais para o Brasil, de que aqui não é possível fazer mais, é que, a meu ver, está destruindo algo fundamental que a gente sempre teve para que o sonho se mantivesse: um grupo de pessoas com vigor transformador, Partidos organizados, insatisfeitos com a realidade, que não aceitavam a idéia de que, para o Brasil, está bom demais. Morreram esses. Sumiram do mapa político brasileiro, sumiram do mapa ideológico os que não aceitam que, para o Brasil, está bom demais.

Essa é a grande tragédia. É a grande tragédia achar que, para o Brasil, a esquerda que temos aí já está boa demais. Senador Mão Santa, para mim, essa é a maior das tragédias! Para o Brasil, a esquerda que está aí já está boa demais. Isso significa que não há mais sonho transformador, não há mais propostas de mudanças, não há mais vigor daqueles que dizem: “para o Brasil, não está bom ainda”, mesmo reconhecendo avanços que tenhamos tido. Perdemos essa capacidade. Até na corrupção, a gente diz: “para o Brasil, está bom demais, porque agora já se cassaram alguns, agora já se põe nos jornais a corrupção”. No entanto, nenhum foi punido, nenhum foi preso, mas para o Brasil, está bom demais, porque, pelo menos agora, os jornais publicam os nomes dos contraventores.

Eu fico preocupado quando vejo um slogan como esse traindo pessoas que considero próximas ao longo da história comum que tivemos de luta neste País pelas mudanças sociais. Hoje, distribuem contentes, dizendo: “Para o Brasil, está bom demais o que o Governo Lula tem feito em cinco anos”. Eu acho até que está bom demais, comparando-se com outros Governos, sobretudo pela generosidade social, que é algo positivo, mas é claro que não está bom demais, quando a gente compara com o possível sonho que tivéssemos.

Agora, o que esperar de diferente em um País onde o slogan é “deitado em berço esplêndido”? Ou seja, no Brasil, deitado é bom demais. (Senador Cristovam Buarque)

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