Nas ribanceiras do rio Nilo, quase todas as mulheres ainda sofrem a mutilação genital.Os turistas que visitam o Egito ignoram esta realidade: no país, 97% das mulheres conheceram a dor da excisão. A sociedade como um todo conspira para perpetuar a prática, a qual Deus é sempre invocado para justificar.
Essas são palavras bastante raras. Para que elas nascessem foram necessários anos de intimidade, alguma dose de chantagem, alguma surpresa superada com dificuldade. E então, elas jorraram, como um fluxo que ficou contido por um tempo longo demais. Hayet contou para Christiane, a sua patroa, o que havia sido a sua excisão [mutilação genital feminina. a violenta extração do clitórios e pequenos lábios da vagina].
As duas mulheres não são amigas, mas elas viveram lado a lado por mais de vinte anos. A primeira é uma "saídie" (mulher do Sul) que emigrou para a capital, onde ela sobrevive trabalhando como faxineira; a outra é uma burguesa cairota (natural do Cairo). A primeira é excisada, a outra não. Nunca até então elas haviam conversado a respeito disso.
Foi preciso insistir muito para que Christiane aceitasse fazer esta pergunta à sua empregada doméstica. A resposta veio depois de muitas hesitações, pois ela implicava a ruptura de uma tácita "omerta" (lei do silêncio): "Eu tinha 11 anos. Ninguém me disse nada. A 'daya' [parteira tradicional] apareceu lá em casa. A minha mãe sentou-se sobre as minhas pernas, e segurou os meus braços. Tudo aconteceu muito depressa: eu vi uma faca e senti a frieza da sua lâmina entre as minhas pernas. Então, senti aquela dor. Terrível. Eu achei que eu estava a ponto de morrer. Procurei pelo olhar da minha mãe, mas não o encontrei. Aquilo sangrou muito. Voltaram a colocar fraldas em mim durante alguns dias. Ninguém me explicou nada. Foi só muitos anos depois que eu acabei entendendo o que eles fizeram comigo, ao assistir a um programa na televisão. Mas alguém desligou o aparelho. Essas são coisas sobre as quais ninguém fala".
97% das egípcias, que elas sejam cristãs ou muçulmanas, são excisadas, geralmente no limiar da adolescência. Este número, perfeitamente oficial, é aterrador.
Quem, em meio às hordas de turistas que arrebentam sobre as ribanceiras do Nilo entre Luxor e Assuã, correndo até as Pirâmides, penetrando na penumbra dos túmulos reais, suspeita disso? Querer falar em excisão hoje no Egito ainda equivale a incomodar, a esbarrar na negação, na ignorância. E isso ocorre em todos os meios da sociedade.
Nevine Ansara, uma cria da burguesia abastada, que felizmente foi poupada, ignora ainda, aos 40 anos já passados, do que se trata exatamente. Fatima el Guindi, a filha de um bawab (guardião de imóvel, factótum) que foi mutilada aos 11 anos, entendeu o que haviam feito com ela ao ouvir uma massagista do seu prédio fazer comentários a respeito.
"A tradição justifica tudo", explica Marie Assad, uma socióloga. "Nunca ninguém estabelece uma relação de causa a efeito nem com as dores que elas sentem durante anos, nem com certos problemas que surgem na hora do parto, nem, é claro, com a sexualidade".
Em 1994, a difusão pela CNN de uma excisão filmada tivera o efeito de uma bomba. A correspondente deste canal de televisão americano por pouco não fora expulsa do país. E então? O que aconteceu? Nada...
O escândalo acabou se apagando das memórias. Em 2003, uma grande campanha nacional intitulada "Ila mat", que havia sido incentivada por Suzanne Mubarrak, a mulher do presidente, teve início. Vários anúncios denunciadores foram veiculados na televisão, passando várias vezes por dia. O silêncio, contudo, permanece a regra.
A situação legal é complexa. Não existe nenhuma lei contra a excisão, mas o artigo 240 do Código Penal condena a uma pena de 3 a 5 anos de prisão todo autor de sevícias corporais. Em 1996, o ministro da Saúde proibiu a prática nos hospitais públicos. Vários médicos atacaram o decreto perante o tribunal administrativo, que o cancelou em 24 de junho de 1997.
Entretanto, o decreto em questão foi restabelecido pela Alta Corte administrativa em dezembro de 1997. Esta é a situação que permanece em vigor até hoje. Teoricamente, a excisão é proibida. Concretamente, ela continua sendo praticada cotidianamente sem que nenhuma condenação nunca seja pronunciada.
Deus, que aqui tem as costas cada vez mais largas, é sempre invocado para justificar a prática. Mounir Fawzi, um ginecologista, ensina a medicina na Universidade de Ain Chams. Ele fala num inglês excelente e num francês mais
do que correto, uma herança dos seus estudos no colégio jesuíta de La Salle. Os seus cabelos já são um pouco grisalhos, e o seu sorriso permanece um pouco desconfiado. "Eu já sei o que vocês vão me dizer". Na parede do seu consultório está pregada uma foto de Jerusalém, cidade vizinha e venerada, ao lado dos seus diplomas. Pacientes veladas com elegância freqüentam seu gabinete em Heliópolis, na periferia nobre da cidade.
Pois este médico é favorável à excisão. Ele a pratica na sua clínica, descartando por meio de uma frase o fato de ela ser proibida: "Trata-se de um decreto do governo, e não de uma lei". Ele assume a sua militância até o ponto de praticar a cirurgia --uma fonte de lucros reais-- gratuitamente. "O Profeta [Maomé] aprovou a excisão. Portanto, praticá-la é uma coisa boa", diz.
Mas a sua opinião é controvertida. O imame (sacerdote islâmico) de Al Azhar, o xeque Mohammed Sayyed Tantawi, pronunciou-se contra a mutilação, revelando que a sua própria filha havia sido poupada. Abdel Meneim Abul Fotuh, um responsável da confraria dos Irmãos Muçulmanos e secretário-geral do sindicato dos médicos, se diz convencido de que a religião não recomenda em caso algum a excisão.
Nas aldeias do Alto Egito, 5.000 manuais foram distribuídos. Nele, o seu autor, Mohammed Selim Al Aawa, secretário-geral da Associação Mundial dos Ulemás (teólogos e indivíduos sábios versados em leis e religião) muçulmanos, afirma que a prática não tem nenhuma base religiosa. Por sua vez, Amr Khaled, um pregador muito popular junto aos jovens, repete esta afirmação tanto em entrevistas na televisão como nos sites islâmicos na Internet, sendo apoiado nesta luta pelo patriarca copta Chenuda III.
Mas o mufti (jurisconsulto supremo e intérprete qualificado do Alcorão) da República, Nasr Farid Wassel, se mantém numa prudente expectativa. "O Islã deixa decidirem as pessoas competentes na matéria, no caso, os médicos", enuncia.
O xeque Yussef Al-Qaradhawi, um guia espiritual dos Irmãos Muçulmanos, admite o princípio. Para ele, "aqueles que consideram que a excisão é o melhor meio de proteger suas filhas deveriam aplicá-la".
Ahmed Suleiman, um conferencista em direito islâmico na universidade do Cairo, afirma: "A excisão é fonte de pudor, de honra e de equilíbrio psicológico". Segundo ele, a mutilação "não pode provocar a frigidez nas mulheres. Ao longo de inúmeras gerações que se sucederam, os muçulmanos têm praticado a excisão sem, contudo, deixarem de levar uma vida conjugal plena".
Nas explicações do doutor Fawzi, o técnico não demora a vir em socorro do fiel. "É muito difícil para uma mulher que praticou a masturbação conseguir experimentar então o orgasmo vaginal", garante. "A excisão lhe permite, por ter de se concentrar nesta última forma de orgasmo, orientar-se rumo a uma vida de casal plena e completa". Além disso, "a excisão impede que ocorram um grande número de infecções e limita os cânceres da vulva".
Daí a obrigação de recorrer a um verdadeiro médico. "Foi a clandestinidade que causou problemas acerca da excisão", afirma este ginecologista. O seu último argumento é patriótico: "No Egito, tudo se baseia na família. Tentar fazer com que a sexualidade se torne entre nós o que ela é no Ocidente equivale a tramar um plano para destruí-la. Quem, em 1997, quis proibir a excisão? Foram os estrangeiros, principalmente os americanos".
No terreno, esta crença na obrigação religiosa é um dos principais obstáculos nos quais esbarram os raros adversários da prática. Em Beni Souef, uma pequena cidade sem charme algum, onde se chega por meio de um trem que avança aos solavancos, as militantes do Conselho Nacional da Maternidade e da Infância teceram pacientemente suas redes.
"Eu me dei conta do que é a excisão quando eu perdi um bebê durante o parto", conta uma mulher. "De início, eles tentaram explicar o ocorrido dizendo que era porque eu havia sido mal excisada e que a cabeça do bebê tocara o que havia sobrado daquela mutilação incompleta. Eles falaram então em recomeçar. Eu não quis. Mas eu queria entender ao certo o que havia acontecido. Um outro médico explicou-me precisamente o que havia sido retirado de fato de mim. Eu tive muitas dificuldades para acreditar que era verdade...".
Em Beni Souef, não se pode abordar diretamente a questão da excisão. É preciso lançar mão de estratagemas, falar sobre saúde, em direitos humanos, em estratégias de desenvolvimento. "Nós fornecemos informações científicas críveis, nós insistimos sobre o fato de que o clitóris é um órgão natural, que ele tem as suas funções", diz uma das mulheres militantes do Conselho da maternidade.
As militantes lembram que a tradição não é imutável. Como prova disso, elas citam a extinção de algumas dentre elas, tais como o casamento entre parentes ou a defloração. Algumas comparações fáceis também são utilizadas como argumentos: cortar "isso" para obrigar as garotas a serem castas equivale a cortar uma mão porque ela é uma ferramenta potencial para o roubo.
Mas é preciso tomar muito cuidado também com o material utilizado para esta campanha. No dispensário de El Marg, na periferia do Cairo, uma fita cassette de prevenção foi considerada como pornográfica pelo imame do bairro.
Atentas ao que lhes é dito, as mulheres ouvem, aquiescem. Mas, quando se trata de falar das suas dores, das garotas que morrem por causa de hemorragias, das suas vidas sexuais sacrificadas, elas são muito relutantes, a não ser na intimidade de uma conversa reservada.
"Nós conseguimos convencer muitas jovens mulheres. Elas se sentem menos atadas pela tradição", afirma Viviane Fuad, membro do Conselho. Entre elas, os números estão diminuindo: 51% apenas das meninas de 11 a 12 anos seriam excisadas, um número que subiria para 77% para aquela que têm entre 15 e 17 anos.
"É preciso então vencer a pressão social", acrescenta Magdi Helmi, um diretor de programas de saúde na organização Caritas. "E esta é a parte a mais difícil. Em todos os lugares onde famílias tentaram renunciar à prática sem estarem de acordo com os outros habitantes da aldeia, a pressão e a condenação foram fortes demais. Nós só podemos abordar o problema no quadro de soluções coletivas. Sem isso, não se consegue avançar. É preciso envolver todo mundo".
Este foi o caso em Binben, perto de Assuã, a primeira aldeia a ter renunciado oficialmente à prática da excisão. Para tanto, elas tiveram que se instalar no vilarejo, conquistar a confiança dos líderes religiosos, tanto do padre cristão como do xeque soufi, e então a do prefeito, das ONGs locais...
Hoje, o objetivo é conseguir convencer outras aldeias do Alto Egito a declararem publicamente sua recusa. Na primeira campanha, 60 municípios situados em seis regiões governamentais foram escolhidos para implementar este plano.
"Acima de tudo, nós falamos do problema", prossegue Viviane Fouad.. "É ao mesmo tempo terrível, por ser um avanço realmente muito limitado, e muito animador, porque a partir disso nasce a esperança de que uma solução possa surgir. A verdadeira vitória, em primeiro lugar, foi essa: poder falar sobre isso".
Essas são palavras bastante raras. Para que elas nascessem foram necessários anos de intimidade, alguma dose de chantagem, alguma surpresa superada com dificuldade. E então, elas jorraram, como um fluxo que ficou contido por um tempo longo demais. Hayet contou para Christiane, a sua patroa, o que havia sido a sua excisão [mutilação genital feminina. a violenta extração do clitórios e pequenos lábios da vagina].
As duas mulheres não são amigas, mas elas viveram lado a lado por mais de vinte anos. A primeira é uma "saídie" (mulher do Sul) que emigrou para a capital, onde ela sobrevive trabalhando como faxineira; a outra é uma burguesa cairota (natural do Cairo). A primeira é excisada, a outra não. Nunca até então elas haviam conversado a respeito disso.
Foi preciso insistir muito para que Christiane aceitasse fazer esta pergunta à sua empregada doméstica. A resposta veio depois de muitas hesitações, pois ela implicava a ruptura de uma tácita "omerta" (lei do silêncio): "Eu tinha 11 anos. Ninguém me disse nada. A 'daya' [parteira tradicional] apareceu lá em casa. A minha mãe sentou-se sobre as minhas pernas, e segurou os meus braços. Tudo aconteceu muito depressa: eu vi uma faca e senti a frieza da sua lâmina entre as minhas pernas. Então, senti aquela dor. Terrível. Eu achei que eu estava a ponto de morrer. Procurei pelo olhar da minha mãe, mas não o encontrei. Aquilo sangrou muito. Voltaram a colocar fraldas em mim durante alguns dias. Ninguém me explicou nada. Foi só muitos anos depois que eu acabei entendendo o que eles fizeram comigo, ao assistir a um programa na televisão. Mas alguém desligou o aparelho. Essas são coisas sobre as quais ninguém fala".
97% das egípcias, que elas sejam cristãs ou muçulmanas, são excisadas, geralmente no limiar da adolescência. Este número, perfeitamente oficial, é aterrador.
Quem, em meio às hordas de turistas que arrebentam sobre as ribanceiras do Nilo entre Luxor e Assuã, correndo até as Pirâmides, penetrando na penumbra dos túmulos reais, suspeita disso? Querer falar em excisão hoje no Egito ainda equivale a incomodar, a esbarrar na negação, na ignorância. E isso ocorre em todos os meios da sociedade.
Nevine Ansara, uma cria da burguesia abastada, que felizmente foi poupada, ignora ainda, aos 40 anos já passados, do que se trata exatamente. Fatima el Guindi, a filha de um bawab (guardião de imóvel, factótum) que foi mutilada aos 11 anos, entendeu o que haviam feito com ela ao ouvir uma massagista do seu prédio fazer comentários a respeito.
"A tradição justifica tudo", explica Marie Assad, uma socióloga. "Nunca ninguém estabelece uma relação de causa a efeito nem com as dores que elas sentem durante anos, nem com certos problemas que surgem na hora do parto, nem, é claro, com a sexualidade".
Em 1994, a difusão pela CNN de uma excisão filmada tivera o efeito de uma bomba. A correspondente deste canal de televisão americano por pouco não fora expulsa do país. E então? O que aconteceu? Nada...
O escândalo acabou se apagando das memórias. Em 2003, uma grande campanha nacional intitulada "Ila mat", que havia sido incentivada por Suzanne Mubarrak, a mulher do presidente, teve início. Vários anúncios denunciadores foram veiculados na televisão, passando várias vezes por dia. O silêncio, contudo, permanece a regra.
A situação legal é complexa. Não existe nenhuma lei contra a excisão, mas o artigo 240 do Código Penal condena a uma pena de 3 a 5 anos de prisão todo autor de sevícias corporais. Em 1996, o ministro da Saúde proibiu a prática nos hospitais públicos. Vários médicos atacaram o decreto perante o tribunal administrativo, que o cancelou em 24 de junho de 1997.
Entretanto, o decreto em questão foi restabelecido pela Alta Corte administrativa em dezembro de 1997. Esta é a situação que permanece em vigor até hoje. Teoricamente, a excisão é proibida. Concretamente, ela continua sendo praticada cotidianamente sem que nenhuma condenação nunca seja pronunciada.
Deus, que aqui tem as costas cada vez mais largas, é sempre invocado para justificar a prática. Mounir Fawzi, um ginecologista, ensina a medicina na Universidade de Ain Chams. Ele fala num inglês excelente e num francês mais
do que correto, uma herança dos seus estudos no colégio jesuíta de La Salle. Os seus cabelos já são um pouco grisalhos, e o seu sorriso permanece um pouco desconfiado. "Eu já sei o que vocês vão me dizer". Na parede do seu consultório está pregada uma foto de Jerusalém, cidade vizinha e venerada, ao lado dos seus diplomas. Pacientes veladas com elegância freqüentam seu gabinete em Heliópolis, na periferia nobre da cidade.
Pois este médico é favorável à excisão. Ele a pratica na sua clínica, descartando por meio de uma frase o fato de ela ser proibida: "Trata-se de um decreto do governo, e não de uma lei". Ele assume a sua militância até o ponto de praticar a cirurgia --uma fonte de lucros reais-- gratuitamente. "O Profeta [Maomé] aprovou a excisão. Portanto, praticá-la é uma coisa boa", diz.
Mas a sua opinião é controvertida. O imame (sacerdote islâmico) de Al Azhar, o xeque Mohammed Sayyed Tantawi, pronunciou-se contra a mutilação, revelando que a sua própria filha havia sido poupada. Abdel Meneim Abul Fotuh, um responsável da confraria dos Irmãos Muçulmanos e secretário-geral do sindicato dos médicos, se diz convencido de que a religião não recomenda em caso algum a excisão.
Nas aldeias do Alto Egito, 5.000 manuais foram distribuídos. Nele, o seu autor, Mohammed Selim Al Aawa, secretário-geral da Associação Mundial dos Ulemás (teólogos e indivíduos sábios versados em leis e religião) muçulmanos, afirma que a prática não tem nenhuma base religiosa. Por sua vez, Amr Khaled, um pregador muito popular junto aos jovens, repete esta afirmação tanto em entrevistas na televisão como nos sites islâmicos na Internet, sendo apoiado nesta luta pelo patriarca copta Chenuda III.
Mas o mufti (jurisconsulto supremo e intérprete qualificado do Alcorão) da República, Nasr Farid Wassel, se mantém numa prudente expectativa. "O Islã deixa decidirem as pessoas competentes na matéria, no caso, os médicos", enuncia.
O xeque Yussef Al-Qaradhawi, um guia espiritual dos Irmãos Muçulmanos, admite o princípio. Para ele, "aqueles que consideram que a excisão é o melhor meio de proteger suas filhas deveriam aplicá-la".
Ahmed Suleiman, um conferencista em direito islâmico na universidade do Cairo, afirma: "A excisão é fonte de pudor, de honra e de equilíbrio psicológico". Segundo ele, a mutilação "não pode provocar a frigidez nas mulheres. Ao longo de inúmeras gerações que se sucederam, os muçulmanos têm praticado a excisão sem, contudo, deixarem de levar uma vida conjugal plena".
Nas explicações do doutor Fawzi, o técnico não demora a vir em socorro do fiel. "É muito difícil para uma mulher que praticou a masturbação conseguir experimentar então o orgasmo vaginal", garante. "A excisão lhe permite, por ter de se concentrar nesta última forma de orgasmo, orientar-se rumo a uma vida de casal plena e completa". Além disso, "a excisão impede que ocorram um grande número de infecções e limita os cânceres da vulva".
Daí a obrigação de recorrer a um verdadeiro médico. "Foi a clandestinidade que causou problemas acerca da excisão", afirma este ginecologista. O seu último argumento é patriótico: "No Egito, tudo se baseia na família. Tentar fazer com que a sexualidade se torne entre nós o que ela é no Ocidente equivale a tramar um plano para destruí-la. Quem, em 1997, quis proibir a excisão? Foram os estrangeiros, principalmente os americanos".
No terreno, esta crença na obrigação religiosa é um dos principais obstáculos nos quais esbarram os raros adversários da prática. Em Beni Souef, uma pequena cidade sem charme algum, onde se chega por meio de um trem que avança aos solavancos, as militantes do Conselho Nacional da Maternidade e da Infância teceram pacientemente suas redes.
"Eu me dei conta do que é a excisão quando eu perdi um bebê durante o parto", conta uma mulher. "De início, eles tentaram explicar o ocorrido dizendo que era porque eu havia sido mal excisada e que a cabeça do bebê tocara o que havia sobrado daquela mutilação incompleta. Eles falaram então em recomeçar. Eu não quis. Mas eu queria entender ao certo o que havia acontecido. Um outro médico explicou-me precisamente o que havia sido retirado de fato de mim. Eu tive muitas dificuldades para acreditar que era verdade...".
Em Beni Souef, não se pode abordar diretamente a questão da excisão. É preciso lançar mão de estratagemas, falar sobre saúde, em direitos humanos, em estratégias de desenvolvimento. "Nós fornecemos informações científicas críveis, nós insistimos sobre o fato de que o clitóris é um órgão natural, que ele tem as suas funções", diz uma das mulheres militantes do Conselho da maternidade.
As militantes lembram que a tradição não é imutável. Como prova disso, elas citam a extinção de algumas dentre elas, tais como o casamento entre parentes ou a defloração. Algumas comparações fáceis também são utilizadas como argumentos: cortar "isso" para obrigar as garotas a serem castas equivale a cortar uma mão porque ela é uma ferramenta potencial para o roubo.
Mas é preciso tomar muito cuidado também com o material utilizado para esta campanha. No dispensário de El Marg, na periferia do Cairo, uma fita cassette de prevenção foi considerada como pornográfica pelo imame do bairro.
Atentas ao que lhes é dito, as mulheres ouvem, aquiescem. Mas, quando se trata de falar das suas dores, das garotas que morrem por causa de hemorragias, das suas vidas sexuais sacrificadas, elas são muito relutantes, a não ser na intimidade de uma conversa reservada.
"Nós conseguimos convencer muitas jovens mulheres. Elas se sentem menos atadas pela tradição", afirma Viviane Fuad, membro do Conselho. Entre elas, os números estão diminuindo: 51% apenas das meninas de 11 a 12 anos seriam excisadas, um número que subiria para 77% para aquela que têm entre 15 e 17 anos.
"É preciso então vencer a pressão social", acrescenta Magdi Helmi, um diretor de programas de saúde na organização Caritas. "E esta é a parte a mais difícil. Em todos os lugares onde famílias tentaram renunciar à prática sem estarem de acordo com os outros habitantes da aldeia, a pressão e a condenação foram fortes demais. Nós só podemos abordar o problema no quadro de soluções coletivas. Sem isso, não se consegue avançar. É preciso envolver todo mundo".
Este foi o caso em Binben, perto de Assuã, a primeira aldeia a ter renunciado oficialmente à prática da excisão. Para tanto, elas tiveram que se instalar no vilarejo, conquistar a confiança dos líderes religiosos, tanto do padre cristão como do xeque soufi, e então a do prefeito, das ONGs locais...
Hoje, o objetivo é conseguir convencer outras aldeias do Alto Egito a declararem publicamente sua recusa. Na primeira campanha, 60 municípios situados em seis regiões governamentais foram escolhidos para implementar este plano.
"Acima de tudo, nós falamos do problema", prossegue Viviane Fouad.. "É ao mesmo tempo terrível, por ser um avanço realmente muito limitado, e muito animador, porque a partir disso nasce a esperança de que uma solução possa surgir. A verdadeira vitória, em primeiro lugar, foi essa: poder falar sobre isso".
LE MONDE
23/12/2005
Por Hubert Prolongeau
Por Hubert Prolongeau
Tradução: Jean-Yves de Neufville
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"Viva de forma que, quando seus filhos pensarem em justiça, carinho e integridade, pensem em você." (H. Jackson Brown Jr)
"Viva de forma que, quando seus filhos pensarem em justiça, carinho e integridade, pensem em você." (H. Jackson Brown Jr)
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