10 de out. de 2015

Entre mentiras e verdade. Onde ficamos...

Heranças no travesseiro. 
. Durante uma indesejável insônia, meu travesseiro se dispôs a lembrar-me coisas que li, vivi ou aprendi. Dialogamos um pouco sem rumo definido, até que se abriu uma pista proveitosa. Nela me espreitava um transeunte de cara pouco adequada para fazer-me conciliar o sono. Tal era sua feiura, que ele até se divertia zombando dela, como fez na réplica à cliente que o acusara de falso, homem de duas caras: - Se eu tivesse duas caras, a senhora acha que andaria por aí com esta?
. Estamos falando de Lincoln, presidente americano durante a Guerra de Secessão, assassinado pouco depois do seu final. Houve imensas perdas na guerra, mas ele a conduziu com êxito e deixou como herança a unidade do país.
. Conversava-se numa roda sobre antepassados ilustres, e um dos presentes quis deixar Lincoln em má situação. Todos o sabiam filho de lenhador, e um adversário político resolveu alfinetá-lo, indagando sobre a profissão do avô. Recebeu resposta à altura: - Não me preocupa o trabalho do meu avô, e sim o que faz o neto dele.
. Talvez haja aí uma imprecisão do meu travesseiro, que não tinha certeza se a preocupação do presidente era com ele mesmo, como narrei, ou se era com seus netos futuros. Em ambas as hipóteses, o que está em foco é o patrimônio hereditário.
. O assunto da ascendência, e portanto da herança, retorna em outro episódio da vida de Lincoln. Um herdeiro da mais alta nobreza, ao se apresentar como voluntário para a guerra, achou que se valorizaria diante de Lincoln, mencionando os nomes dos seus ancestrais famosos. Concluída a exibição, a inveja republicana do presidente falou mais alto: - Não se preocupe. Isso não será obstáculo à sua carreira no exército.
. Entre os muitos personagens históricos que construíram ou conquistaram impérios, talvez sejam maioria os que não conseguiram educar ou motivar a própria família adequadamente, e a consequência inevitável foi a derrocada, ou então a entrega do império a outras mãos. Em muitíssimos outros casos formaram-se valorosas dinastias, garantindo ao longo do tempo a honra da família, a coesão hereditária, o progresso e bem estar da população daquele território.
. Nas dinastias europeias, exemplos memoráveis comprovam ambas as situações.
. Acredito que estudos meticulosos tenham avaliado os fatores que conduzem ao progresso e à decadência dessas dinastias. Se ainda não foram feitos, seria muito útil alguém os fazer. Um dos pontos a abordar é a comparação entre os impérios erguidos pela nobreza com outros de caráter estritamente financeiro. Ambos se mantêm com base em patrimônios econômico-financeiros, mas a principal diferença é a atividade política e social, específica da nobreza. Bons princípios e boas práticas governativas, na herança que a nobreza se esmera em transmitir à descendência, são muito mais decisivos que uma montanha de dinheiro, e esta nem é seu principal objetivo.
. Uma atividade importante das dinastias nobres era detectar entre os seus servidores ou súditos os bem dotados em vários ramos de atividade, e também moralmente, em seguida distingui-los e prestigiá-los por vários meios. Meu travesseiro só me apresentou três exemplos, que vou narrar como ele os contou.
. Um sapateiro da corte conseguiu produzir para um rei francês do século XVIII um par de botas inteiriças, sem nenhuma costura. Não indaguei como ele o conseguiu, mas acho que na sola haveria algum tipo de costura ou cola, porém este é um detalhe sem importância. Nenhum rei ou nobre daquele tempo deixaria esse feito sem uma recompensa para estimular o sapateiro, e assim indicar a todos os artesãos a necessidade ou conveniência de desenvolver objetos de alta qualidade.
. Em muitos casos a recompensa era um título de nobreza, como o de Luís XIV para Le Notre, genial jardineiro de Versalhes. Consta que ele já esperava e ansiava por isso, tinha até desenhado um brasão com os seus instrumentos de trabalho.
. Em pelo menos um caso o título de nobreza foi recusado. A família Pinon descendia comprovadamente de lenhadores (nada a ver com Lincoln) desde a época de Carlos Magno, e prosseguia no ramo quando Luís XIV decidiu nobilitá-la. O emissário do rei para ofertar ao chefe dessa família o título de nobreza recebeu a seguinte resposta: - Diga ao nosso bom rei que agradeço, mas prefiro permanecer o primeiro lenhador da França, em vez de tornar-me o último dos seus barões.
. Títulos assim são patrimônios hereditários sem valor comercial, mas valem mais que qualquer montanha de dinheiro, pela honra que trazem aos que prezam a honra.
. O despertador tocou, encerrando a conversa com meu loquaz travesseiro. Não sem antes ele me lembrar, como sempre, a grande herança de meu pai, um conselho para toda a vida: Ser hoje melhor do que ontem, e amanhã melhor do que hoje.
. E a crônica de hoje estava pronta, só precisei transcrevê-la para o papel. (Jacinto Flecha)

O Partido Socialista morreu, diz analista das esquerdas francesas
. Laurent Bouvet, pensador socialista e diretor do Observatoire de la Vie Politique (Ovipol) da Fondation Jean-Jaurès, pintou um deprimente quadro do Partido Socialista francês (PS), hoje no poder e praticamente a única opção viável para as esquerdas francesas.
. Bouvet resumiu o seu balanço com uma frase lapidar: O PS está moribundo, o partido de Épinay [Épinay-sur-Seine, localidade onde foi fundado] está morto, registrou o jornal parisiense Le Figaro.
. O tema interessa na América Latina pois o PS francês foi e continua sendo um grande patrocinador das esquerdas tupiniquins, intensamente unido ao lulopetismo e ao Foro de São Paulo.
. Bouvet apontou como causas do desastre o desinteresse e a desconfiança do público em relação aos partidos políticos e aos jogos de lideranças partidárias, bem como a fraqueza dos militantes socialistas em se mobilizarem.
. A própria estruturação do partido, que é o farol das esquerdas francesas, está em profunda crise. Ele deveria se renovar, mas todos brigam internamente pelo controle do aparelho partidário que se desfaz. Pouco restou das promessas de socializar a economia, feitas pelo presidente Hollande, e quase nada se empreendeu no sentido socialista, deixando os militantes decepcionados.
. Reformas como a do casamento homossexual, da educação sexual escolar, etc., levantaram uma onda de oposição que ameaça sepultar o partido para sempre.
. Esses fenômenos provocaram resultados eleitorais catastróficos para o PS e o conjunto das esquerdas.
. Embora faça concessões, Hollande, o presidente mais impopular da V Republica, não consegue reverter o desastroso panorama econômico, que multiplica a antipatia popular.
. O PS fundado em Épinay visava trazer à política o espírito anárquico e emancipador de Maio de 68.
. Ele chegou a conquistar a Presidência em 1981 com Mitterrand, mas logo abandonou a plataforma autogestionária que devia operar a ruptura com o regime de propriedade privada e livre iniciativa, eliminando o capitalismo, conforme prometia.
. Ficou para o PS conduzir a emancipação da sociedade, leia-se a promoção dos direitos das minorias, como LGBT ou raciais.
. O partido ficou lotado de representantes dessas minorias, concentradas nos centros urbanos. Porém, o povo abandonou-o e correu para a extrema-direita.
. Hoje o projeto do PS gera dúvida e desordem entre os socialistas e o partido já avista uma catástrofe eleitoral nas próximas eleições presidenciais.
. O pouco que subsiste após tantas derrotas será logo varrido por essas derrotas eleitorais, diz Bouvet, provocando pesadas deserções.
. O eleitorado progressista não existe mais como pedestal político para relançar uma forca capaz de enfrentar a direita ou mesmo a extrema-direita, continua o especialista.
. Trata-se de uma dissolução sociológica da base do partido. Ele devia se apoiar na juventude, na igualdade e na diversidade. Mas hoje está tomado pelas brigas dos velhos elefantes.
. Fica pouco do partido original. O desejo de romper com o capitalismo através da socialização dos meios de produção, da propriedade coletiva e da intervenção maciça do Estado na economia, pertence à sua história, não ao presente. 
. O anti-racismo se esgotou. Quem se lembra do emblemático SOS Racismo?
. O anti-racismo se revelou ineficaz e ficou como pretexto para favorecer a carreira burocrática de militantes das causas anti-racistas.
. Porém, o PS ainda conserva toda uma casta de guardiões do templo para quem o menor questionamento equivale a um ataque contra o dogma. E a imprensa ri dessa cegueira.
. Os líderes partidários, os responsáveis locais, as associações cidadãs que engrossam a periferia partidária não são mais capazes de entender a sociedade e de conversar com ela.
. O anti-racismo virou um dogma totalmente ineficaz contra o racismo e sucumbe diante dos espectros anti-semitas e antimuçulmanos, que crescem renovados.
. O governo ataca este e aquele intelectual, esquecendo-se de que a intelectualidade é um componente essencial da vida francesa, sobretudo nas esquerdas.
. A independência de espírito e a liberdade de crítica estão encravadas na alma revolucionária desde o Iluminismo.
. Mas quando algum intelectual se volta contra o partido, este o esmaga. E se suicida...
. Os símbolos, a ideologia, as ideias, os militantes, os representantes eleitos, as redes sociais, isso formava o corpo do PS. Já não há mais nenhuma doutrina identificável no socialismo e as sedes do partido se esvaziam.
. O partido nascido em Épinay está morto. E essas foram as suas causas. A atual estrutura do PS ainda boia, mas entrou em estado terminal sem sobressaltos. Sem um choque elétrico profundo não se vê como possa se reinventar, concluiu o pensador socialista. (Luis Dufaur)

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