17 de mai. de 2015

Vaca e burro no beleléu.

Um iracundo leitor da minha última crônica (Governando por provérbios) reagiu com pedradas violentas às minhas flechadas inofensivas: Como ousa qualificar de vaca uma distinta senhora que tanto se dedica ao bem do País? Seria melhor recolher-se à sua insignificância e deixar que outros cuidem do povo, sem ligar para interesses mesquinhos de invejosos.

Surpreendido por acusação tão injustificável, durante bons minutos permaneci aturdido, desnorteado, embargado, confundido, embaraçado, paralisado, atordoado, assustado, desfalecido, estonteado, perturbado, assombrado, atônito, tremebundo, espantado, estatelado. Desculpe-me, leitor, a insistência em tantas palavras com sentidos correlatos. Achei indispensável apelar para a variedade, ante a minha suspeita de que o referido leitor não entende o que lê.

Depois que consegui sair do letargo, entorpecimento, paralisia, emudecimento, estupor, torpor, marasmo, assombro, espanto, atonia em que me encontrava, dediquei-me a investigar o motivo de acusação tão infundada, descabida, desconexa, desmotivada, insensata, incoerente, disparatada, desarrazoada, absurda, irrefletida, impensada, inconsiderada. Não foi difícil encontrar a única frase onde mencionei vaca. Ei-la: A vaca foi pro brejo.

Esse meu leitor raivoso, iracundo, malévolo, intrigante, colérico, enfurecido, malquerente, furioso, furibundo, mal intencionado, irascível, além de tudo isso parece também inculto, iletrado, néscio, inepto, singelo, tosco, ignorante, insensato, estulto, atoleimado, aparvalhado, simplório, bronco, párvulo, pois qualquer pessoa de mediana cultura sabe o significado da frase onde entrou a vaca.

Os pecuaristas precisam estar de olho no gado, para ele não enveredar por caminhos perigosos; um dos quais é o do brejo, pois pode acarretar perda total. Surgiu assim a expressão, muito usada como advertência na linguagem popular. Tranquilize-se portanto esse leitor, pois a vaca à qual me referi é genérica, não tive em mira nenhuma vaca específica. Fica por conta dele fazer aplicação própria, específica. Se encontrar alguma vaca a conduzir o rebanho pro brejo, coisa bem provável neste imenso País pecuarista, só pode ser ela, e peço que me informe.

Já que o meu leitor iracundo se deu o trabalho de alertar-me para o perigo de metáforas sobre animais, lembro-lhe que a minha crônica continha outras referências do gênero. Por exemplo: Para burro enfeitado não faltam noivas; bater na cangalha pra burro entender. Talvez ele tenha imaginado aplicações específicas nestes casos, mas preferiu não externá-las. Acho até razoável a precaução, devido à advertência que um político recebeu quando se referiu a outro como burro: Você pode dizer que ele é inculto, néscio, iletrado, ignorante, incompetente, mas burro ele não é. Talvez o leitor tenha reservado para uma segunda etapa o meu apedrejamento por ter falado em burro. Neste caso, considere aquela advertência como antecipação da minha resposta, mas não deixe de aplicar ao tal político os outros conceitos contidos na advertência.

Expressões como as que usei permeiam a linguagem popular, enriquecendo-a em todos os países. Quando li pela primeira vez o Dom Quixote no original castelhano, notei que a maioria dos provérbios colocados por Cervantes na boca de Sancho Pança são praticamente os mesmos de Portugal e Brasil, e muitos provérbios franceses e ingleses têm também o mesmo teor. É certo que isto ocorre também nos outros países, pois a vida predominantemente pastoril de antigamente deparava em todos os lugares com problemas semelhantes. E a placidez da vida bucólica possibilitava elucubrar advertências, ditados e outras formas sintéticas de linguagem, cujo conteúdo guarda por isso tantas semelhanças.

O significado ou mensagem da maioria dos provérbios e expressões populares é fácil de entender, as analogias falam por si. A ninguém escaparia, por exemplo, o sentido destas expressões populares: A porca torceu o rabo; está com cara de bezerro desmamado; parece boi diante de palácio; jeito de gato que comeu passarinho; passou como gato sobre brasas. Quando me sirvo desses provérbios e expressões, o meu receio é que entre meus leitores haja algum membro da Sociedade Protetora dos Animais. Imagine se ele considera uma humilhação para os animais a comparação com certas pessoas. Aí eu não teria como me defender.

Certas palavras entram sorrateiramente na linguagem quotidiana, e quando se vai procurar a origem, muito tempo depois, é difícil ou impossível encontrá-la. Por exemplo, estou curioso em saber que coisa, lugar, cidade, país deu origem à palavra usada em foi pro beleléu. Talvez alguma vaca ou burro tenha errado o caminho do brejo e desaparecido nesse beleléu. Cada animal tem suas preferências... (Jacinto Flecha)

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