28 de jun. de 2014

O adeus da Academia

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Designou--me a Academia Brasileira de Letras para vir trazer ao amigo que de nós aqui se despede, para lhe vir trazer, nas suas próprias palavras, num gemido da sua lira, para lhe vir trazer o nosso "coração de companheiros".
Eu quase não sei dizer mais, nem sei que mais se possa dizer, quando as mãos que se apertavam no derradeiro encontro, se separam desta para a outra parte da eternidade. Nunca ergui a voz sobre um túmulo, parecendo-­me sempre que o silêncio era a linguagem de nos entendermos com o mistério dos mortos. Só o irresistível de uma vocação como a dos que me chamaram para órgão desses adeuses me abriria a boca ao pé deste jazigo, em torno do qual, ao movimento das emoções reprimidas se sobrepõe o murmúrio do indizível, a sensação de uma existência cuja corrente se ouvisse cair de uma em outra bacia, no insondável do tempo, onde se formam do veio das águas sem manchas, as rochas de cristal exploradas pela posteridade.
Do que ela se reserva em surpresas, em maravilhas de transparências e sonoridade e beleza na obra de Machado de Assis, di­-lo­-ão outros, hão de dizer os seus confrades, já o está dizendo a imprensa, e de esperar é que o diga, dias sem conta, derredor do seu nome, da lápide que vai tombar sobre o seu corpo, mas abrir a porta ao ingresso da sua imagem na sagração dos incontestados, a admiração, a reminiscência, a mágoa sem cura dos que lhe sobrevivem. Eu, de mim, porém, não quisera falar senão do seu coração e de sua alma.
Daqui, deste abismar-se de ilusões e esperanças que soçobram ao cerrar de cada sepulcro, deixemos passar a glória na sua resplandescência, na sua fascinação, na impetuosidade de seu voo. Muito ressumbra sempre da nossa debilidade, na altivez do seu surto e na confiança das suas asas. As arrancadas mais altas do gênio mal se libram nos longes da nossa atmosfera, de todas as partes envolvida e distanciada pelo infinito. Para se não perder no incomensurável deste, para avizinhar a terra do firmamento, não há nada como a bondade.
Quando ela, como aqui se debruça, fora de uma campa ainda aberta, já se não cuida que lhe esteja à beira, de guarda, o mais malquisto dos numes, no sentimento grego, e os braços de si mesmos se levantam, se estendem, se abrem para tomar entre si a visão querida que se aparta.
Não é o clássico da língua; não é o mestre da frase; não é o árbitro das letras; não é o filósofo do romance; não é o mágico do conto; não é o joalheiro do verso, o exemplar sem rival entre os contemporâneos da elegância e da graça, do aticismo e da singeleza no conceber, e no dizer; é o que soube viver intensamente da arte, sem deixar de ser bom. Nascido com uma dessas predestinações sem remédio ao sofrimento, a amargura do seu quinhão nas expiações da nossa herança o não mergulhou no pessimismo dos sombrios, dos mordazes, dos invejosos, dos revoltados. A dor lhe aflorava ligeiramente aos lábios, lhe roçava de leve a pena, lhe ressumava sem azedume das obras, num ceticismo entremeio de timidez e desconfiança, de indulgência e receio, com os seus toques de malícia a sorrirem, de quando em quando, sem maldade, por entre as dúvidas e tristezas do artista. A ironia mesma se desponta, se embebe de suavidade no íntimo desse temperamento, cuja compleição, sem desigualdades, sem espinhos, sem asperezas, refratária aos antagonismos e aos conflitos, dir­se­ia emersa das mãos da própria Harmonia, tal qual essas criações da Hélade, que se lavraram para a imortalidade num mármore cujas linhas parecem relevos do ambiente e projeções do céu no meio do cenário que as circunda.
Deste lado moral de sua entidade, quem me dera saber exprimir, neste momento, o que eu desejaria. Das riquezas da sua inspiração na lírica, da sua mestria no estilo, da sua sagacidade na psicologia, do seu mimo na invenção, da sua bonomia no humorismo, do seu nacionalismo na originalidade, da sua lhaneza, tato e gosto literário, darão testemunho perpetuamente, os seus escritos, galeria de obras­primas, que não atesta menos da nossa cultura, da independência, da vitalidade e das energias civilizadoras da nossa raça do que uma exposição inteira de tesouros do solo e produtos mecânicos do trabalho. Mas, nesta hora de entrada ao ignoto, a este contato quase direto, quase sensível com a incógnita do problema supremo, renovado com interrogações de nossa ansiedade cada vez que um de nós desaparece na torrente de gerações, não é a ocasião dos cânticos de entusiasmo, dos hinos de vitória nas porfias do talento. A este não faltarão comemorações, cujo círculo se alargará com os anos, à medida que o rastro de luz penetrar, pelo futuro além, cada vez mais longe ao seu foco.
O que se apagaria talvez se o não colhessemos logo na memória dos presentes, dos que lhe cultivaram o afeto, dos que lhe seguiram os dias, dos que lhe escutaram o peito, dos que lhe fecharam os olhos, é o sopro de sua vida moral. Quando ele se lhe exalou pela última vez, os amigos que lho receberam com o derradeiro anélito, contraíram a obrigação de o reter, como se reteria na máxima intensidade de aspirações dos nosso pulmões o aroma de uma flor cuja espécie se extinguisse, para o dar a sentir aos sobreviventes, e dele impregnar a tradição, que não perece.
Eu não fui dos que o respiraram de perto. Mas, homem do meu tempo, não sou estranho às influências do mal e do bem, que lhe perpassam no ar. Numa época de lassidão e violência, de hostilidade e fraqueza, de agressão e anarquia nas coisas e nas ideias, a sociedade necessita justamente, por se recobrar, de mansidão e energia, de resistência e conciliação. São as virtudes da vontade e as do coração as que salvam nesses transes. Ora, dessas tendências que atraem para a estabilidade, a pacificação e a disciplina, sobram exemplos no tipo desta vida, mal extinta e ainda quente.
Modelo foi de pureza e correção, temperança e doçura; na família, que a unidade e devoção do seu amor converteu em santuário; na carreira pública, onde se extremou pela fidelidade e pela honra; no sentimento da língua pátria, em que prosava como Luís de Sousa, e cantava como Luís de Camões; na convivência dos seus colegas, dos seus amigos, em que nunca deslisou da modéstia, do recato, da tolerância, da gentileza. Era sua alma um vaso de amenidade e melancolia. Mas a missão da sua existência, repartida entre o ideal e a rotina, não se lhe cumpriu sem rudeza e sem fel. Contudo, o mesmo cálice da morte, carregado de amargura, lhe não alterou a brandura da têmpera e a serenidade da atitude.
Poderíamos gravar­-lhe aqui, na laje da sepultura, aquilo de um grande livro cristão: "Escreve, lê, canta, suspira, ora, sofre os contratempos virilmente", se eu não temesse claudicar, aventurando que as suas atribulações conheceram o lenitivo da prece. O instinto, não obstante, no­lo adivinha nas trevas do seu naufrágio, quando, na orfandade do lar despedaçado, cessou de encontrar providência das suas alegrias e das suas penas, entre as carícias da que tinha sido a meeira da sua lida e do seu pensamento.
(Discurso de Rui Barbosa pronunciado na Academia Brasileira, junto do ataúde de Machado de Assis, aos 29 de setembro de 1908, minutos antes de partir o féretro para o cemitério de S. João Batista)

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