Para conhecimento e reflexão, um o oportuno e lúcido texto.
Que se confirmem e se concretizam as esperanças e prognósticos feitos pelo autor, de uma
substancial mudança em nosso modelo de Estado, a partir das manifestações que tomaram
conta do Pais!...
Nenhuma liderança soube captar e expressar o mal-estar contemporâneo. Este é
provavelmente o seu elemento novo: a internet viabiliza a mobilização antes que surjam as
lideranças.
• Na tentativa de interpretar o protesto das ruas nas grandes cidades brasileiras, há uma
natural tentação de fazer um paralelo com os movimentos similares nos países avançados,
sobretudo da Europa, mas também nos EUA - Occupy Wall Street - assim como com os da
chamada Primavera Árabe. As condições objetivas são, contudo, muito distintas. A
Primavera Árabe é um fenômeno de países totalitários, onde não há representação
democrática. Não é o caso do Brasil. Na Europa, sobretudo nos países mediterrâneos
periféricos mais atingidos pelos efeitos da crise financeira de 2008, houve uma drástica
piora das condições de vida. O desemprego, especialmente entre os jovens, subiu para
níveis dramáticos.
• Mais uma vez, não é o caso do Brasil.
• Nem os críticos mais radicais ousariam argumentar que o Brasil de hoje não se enquadra
nos moldes das democracias representativas do século XX. Podem-se culpar os desacertos
da política econômica nos últimos seis anos. Embora devam ficar mais evidentes daqui para
a frente, os efeitos negativos da incompetência da política econômica só muito
recentemente se fizeram sentir. Fato é que, desde a estabilização do processo inflacionário
crônico, houve grandes avanços nas condições econômicas de vida dos brasileiros. Nos
últimos 20 anos, houve ganho substancial de renda entre os mais pobres. Ao contrário do
que ocorreu em outras partes do mundo, até mesmo nos países avançados, a distribuição
de renda melhorou. O desemprego está em seu mínimo histórico.
• É verdade que a inflação, especialmente a de alimentos, que se faz sentir mais
intensamente pelos assalariados, está em alta. Por mais consciente que se seja em relação
aos riscos, políticos e econômicos, da inflação, é difícil atribuir à inflação o papel de
catalisadora do movimento das ruas nas últimas semanas. Só agora a taxa de inflação
superou o teto da banda - excessivamente generosa, é verdade - da meta do Banco Central.
• Os dois elementos tradicionais da insatisfação popular - dificuldades econômicas e falta
de representação democrática - definitivamente não estão presentes no Brasil de hoje.
Inflação, desemprego, autoritarismo e falta de liberdade de expressão não podem ser
invocados para explicar a explosão popular. O fenômeno é, portanto, novo. Procurar
interpretá-lo de acordo com os cânones do passado parece-me o caminho certo para não o
compreender.
• O movimento de maio de 1968 na França tem sido lembrado diante das manifestações
das últimas semanas. O paralelo se justifica, pois maio de 68 é o paradigma do movimento
sem causas claras nem objetivos bem definidos, uma combustão espontânea
surpreendente, que ocorre em condições políticas e econômicas relativamente favoráveis.
Movimento que, uma vez detonado, canaliza um sentimento de frustração difusa - um malaise - com o estado das coisas, com tudo e todos, com a vida em geral.
• A novidade mais evidente em relação a maio de 68 na França é a internet e as redes
sociais. Embora não tivesse expressão clara na vida pública francesa, a insatisfação difusa
poderia ter sido diagnosticada, ao menos entre os universitários parisienses. No Brasil de
hoje, a irritação difusa podia ser claramente percebida na internet e nas redes sociais. O
movimento pelo passe livre fez com que este mal-estar transbordasse do virtual para a
realidade das ruas. Tanto os universitários franceses de 68, quanto os internautas do Brasil
de hoje, não representam exatamente o que se poderia chamar de as massas ou o povão,
mas funcionam igualmente como sensores e catalisadores de frustrações comuns.
• Quais as causas do mal-estar difuso no Brasil de hoje, que transbordou da internet para a
realidade e levou a população às ruas?
• Parecem ter dois eixos principais. O primeiro, e mais evidente, é uma crise de
representação. A sociedade não se reconhece nos poderes constituídos - Executivo,
Legislativo e Judiciário - em todas suas esferas. O segundo é que o projeto do Estado
brasileiro não corresponde mais aos anseios da população. O projeto do Estado, e não do
governo, é importante que se note, pois a questão transcende governos e oposições. Este
hiato entre o projeto do Estado e a sociedade explica em grande parte a crise de
representação.
• O Estado brasileiro mantém-se preso a um projeto cuja formulação é do início da segunda
metade do século passado. Um projeto que combina uma rede de proteção social com a
industrialização forçada. A rede de proteção social inspirou-se nas reformas das economias
capitalistas da Europa, entre as duas Grandes Guerras, reforçadas após a crise dos anos
1930. Foi introduzida no Brasil por Getúlio Vargas, para a organização do mercado de
trabalho, baseado no modelo da Itália de Mussolini. A industrialização forçada através da
substituição de importações, introduzida por Juscelino Kubitschek nos anos 1950, e
reforçada pelo regime militar nos anos 1970, tem raízes mais autóctones. Suas origens
intelectuais são o desenvolvimentismo latino-americano dos anos 1950, que defendia a ação
direta do Estado, como empresário e planejador, para acelerar a industrialização.
• Não nos interessa aqui fazer a análise crítica do projeto desenvolvimentista que, com
altos e baixos, aos trancos e barrancos, cumpriu seu papel e levou o país às portas da
modernidade neste início de século. Basta ressaltar que o desenvolvimentismo, em seus
dois pilares - a industrialização forçada e a rede de proteção social - dependem da
capacidade do Estado de extrair recursos da sociedade. Recursos que devem ser utilizados
para financiar o investimento público e os benefícios da proteção social.
• Diante da baixa taxa de poupança do setor privado e da precariedade da estrutura
tributária do Estado, a inflação transferiu os recursos da sociedade para o Estado, até que
nos anos 1980 viesse a se tornar completamente disfuncional. Com a inflação estabilizada, a
partir do início dos anos 1990, o Estado se reorganizou para arrecadar por via fiscal também
os recursos que extraía através do imposto inflacionário. A carga fiscal passou de menos de
15% da renda nacional, no início dos anos 1950, para em torno de 25%, nas décadas de
1970 a 90, até saltar para os atuais 36%, depois da estabilização da inflação. O Brasil tem
hoje uma carga tributária comparável, ou mesmo superior, à das economias mais
avançadas.
• O projeto do PT no governo revelou-se flagrantemente retrógrado. É essencialmente a
volta do nacional-desenvolvimentismo.
• Apesar de extrair da sociedade mais de um terço da renda nacional, o Estado perdeu a
capacidade de realizar seu projeto. Não o consegue entregar porque, apesar de arrecadar
36% da renda nacional, investe menos de 7% do que arrecada, ou seja, menos de 3% da
renda nacional. Para onde vão os outros 93% dos quase 40% da renda que extrai da
sociedade? Parte, para a rede de proteção e assistência social, que se expandiu muito além
do mercado de trabalho organizado, mas, sobretudo, para sua própria operação. O Estado
brasileiro tornou-se um sorvedouro de recursos, cujo principal objetivo é financiar a si
mesmo. Os sinais dessa situação estão tão evidentes, que não é preciso conhecer e analisar
os números. O Executivo, com 39 ministérios ausentes e inoperantes; o Legislativo, do qual
só se tem más notícias e frustrações; o Judiciário pomposo e exasperadoramente lento.
• O Estado foi também incapaz de perceber que seu projeto não corresponde mais ao que
deseja a sociedade. O modelo desenvolvimentista do século passado tinha dois pilares.
Primeiro, a convicção de que a industrialização era o único caminho para escapar do
subdesenvolvimento. Países de economia primário-exportadora nunca poderiam almejar
alcançar o estágio de desenvolvimento das economias industrializadas. Segundo, a
convicção de que o capitalismo moderno exige a intervenção do Estado em três dimensões:
para estabilizar as crises cíclicas das economias de mercado; para prover uma rede de
proteção social; e, no caso dos países subdesenvolvidos, para liderar o processo de
industrialização acelerada. As duas primeiras dimensões da ação do Estado são parte do
consenso formado depois da crise dos anos 1930. A terceira decorre do sucesso do
planejamento central soviético em transformar uma economia agrária, semifeudal, numa
potência industrial em poucas décadas. A proteção tarifária do mercado interno, com o
objetivo de proteger a indústria nascente e promover a substituição de importações,
completava o cardápio com um toque de nacionalismo.
• O nacional-desenvolvimentismo, fermentado nos anos 1950, teve sua primeira
formulação como plano de ação do governo na proposta de Roberto Simonsen. Embora
sempre combatido pelos defensores mais radicais do liberalismo econômico, como Eugênio
Gudin, autor de famosa polêmica com Roberto Simonsen, e posteriormente por Roberto
Campos, foi adotado tanto pela esquerda, como pela direita. Seu período de maior sucesso
foi justamente o do milagre econômico do regime militar.
• Na década de 1980, a inflação se acelera e se torna definitivamente disfuncional. As
sucessivas e fracassadas tentativas de estabilização passam a dominar o cenário
econômico. Com a estabilização do real, a partir da segunda metade da década de 1990,
ainda com algum constrangimento em reconhecer que o nacional-desenvolvimentismo já
não fazia sentido num mundo integrado pela globalização, o país parecia estar em busca de
novos rumos. A vitória do PT foi, sem dúvida, parte da expressão desse anseio de mudança.
• Nos dois primeiros anos do governo Lula, a política econômica foi essencialmente pautada
pela necessidade de acalmar os mercados financeiros, sempre conservadores, assustados
com a perspectiva de uma virada radical à esquerda. A partir daí, o PT passou a pôr em
prática o seu projeto. Um projeto muito diferente do que defendia enquanto oposição. O
projeto do PT no governo, frustrando as expectativas dos que esperavam mudanças, muito
mais do que o aparente continuísmo dos primeiros anos do governo Lula, revelou-se
flagrantemente retrógrado. É essencialmente a volta do nacional-desenvolvimentismo,
inspirado no período em este que foi mais bem-sucedido: durante regime militar. A crise
internacional de 2008 serviu para que o governo abandonasse o temor de desagradar aos
mercados financeiros e, sob pretexto de fazer política macroeconômica anticíclica,
promovesse definitivamente a volta do nacional-desenvolvimentismo estatal.
• O PT acrescentou dois elementos novos em relação ao projeto nacional-
desenvolvimentista do regime militar: a ampliação da rede de proteção social, com o Bolsa
Família, e o loteamento do Estado. A ampliação da rede de proteção social se justifica, tanto
como uma inciativa capaz de romper o impasse da pobreza absoluta, em que, apesar dos
avanços da economia, grande parte da população brasileira se via aprisionada, quanto como
forma de manter um mínimo de coerência com seu discurso histórico. Já a lógica por trás do
loteamento do Estado é puramente pragmática. Ao contrário do regime militar, que não
precisava de alianças difusas, o PT utilizou o loteamento do Estado, em todas suas
instâncias, como moeda de troca para compor uma ampla base de sustentação. Sem
nenhum pudor ideológico, juntou o sindicalismo de suas raízes com o fisiologismo do que já
foi chamado de Centrão, atualmente representado principalmente pelo PMDB, no qual se
encontra toda sorte de homens públicos, que, independentemente de suas origens,
perderam suas convicções ao longo da estrada e hoje são essencialmente cínicos.
• Há ainda um terceiro elemento do projeto de poder do PT. Trata-se da eleição de uma
parte do empresariado como aliada estratégica. Tais aliados têm acesso privilegiado ao
crédito favorecido dos bancos públicos e, sobretudo, à boa vontade do governo, para
crescerem, absorverem empresas em dificuldades, consolidarem suas posições
oligopolísticas no mercado interno e se aventurarem internacionalmente como campeões
nacionais.
• A combinação de um projeto anacrônico com o loteamento do Estado entre o sindicalismo
e o fisiologismo político, ao contrário do pretendido, levou à sobrevalorização cambial e à
desindustrialização. Só foi possível sustentar um crescimento econômico medíocre enquanto
durou a alta dos preços dos produtos primários, puxados pela demanda da China. A
ineficiência do Estado nas suas funções básicas - segurança, infraestrutura, saúde e
educação - agravou-se significativamente. Ineficiência realçada pela redução da pobreza
absoluta na população, que aumentou a demanda por serviços de qualidade.
• A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser catalizadora de uma mudança profunda
de rumo, que abra o caminho para um novo desenvolvimento.
• Loteado e inadimplente em suas funções essenciais, enquanto absorvia parcela cada vez
maior da renda nacional para sua própria operação, o Estado passou a ser visto como um
ilegítimo expropriador de recursos. Não apenas incapaz de devolver à sociedade o mínimo
que dele se espera, mas também um criador de dificuldades. A combinação de uma
excessiva regulamentação de todas as esferas da vida, com a truculência e a arrogância de
seus agentes, consolidou o estranhamento da sociedade. Em todas as suas esferas, o
Estado deixou de ser percebido como um aliado, representativo e prestador de serviço.
Passou a ser visto como um insaciável expropriador, cujo único objetivo é criar vantagens
para os que dele fazem parte, enquanto impõe dificuldades e cria obrigações para o resto
da população. O contraste da realidade com o ufanismo da propaganda oficial só agravou o
estranhamento e consolidou o divórcio entre a população e os que deveriam ser seus
representantes e servidores.
• A insatisfação com a democracia representativa não é um fenômeno exclusivamente
brasileiro. As razões dessa insatisfação ainda não estão claras, mas é possível que o modelo
de representação democrática, constituído há dois séculos para sociedades menores e mais
homogêneas, tenha deixado de cumprir seu papel num mundo interligado de 7 bilhões de
pessoas, e precise ser revisto. O debate público deslocou-se das esferas tradicionais da
política para a internet e as redes sociais. Ameaçada pelo crescimento da internet e
habituada ao seu papel de agente da política tradicional, a mídia não percebeu que o debate
havia se deslocado.
• No caso brasileiro, perplexa com sua aparente falta de repercussão e pressionada
financeiramente pela competição da internet, uma parte da mídia desistiu do jornalismo de
interesse público e passou a fazer um jornalismo de puro entretenimento. Mesmo os que
resistiram, cederam, em maior ou menor escala, à lógica dos escândalos. Foram incapazes
de compreender a razão da sua falta de repercussão, pois não se deram conta de que o
público e o debate haviam se deslocado para a internet. Surpreendida pelo movimento de
protestos, num primeiro momento, a mídia não foi capaz de avaliar a extensão da
insatisfação. Transformou-se ela própria em alvo da irritação popular. Em seguida, aderiu
sem convencer, sempre a reboque do debate e da mobilização através da internet. A favor
da mídia, diga-se que ninguém foi capaz de captar a insatisfação latente antes da eclosão
do movimento das ruas. As pesquisas apontavam, até muito recentemente, grande apoio à
presidente da República, considerada praticamente imbatível, até mesmo por seus
eventuais adversários nas próximas eleições. Nenhuma liderança soube captar e expressar
o mal-estar contemporâneo. Este é provavelmente o seu elemento novo: a internet viabiliza
a mobilização antes que surjam as lideranças. Tanto as possibilidades como os riscos são
novos.
• O projeto nacional-desenvolvimentista combina o consumismo das economias capitalistas
avançadas com o produtivismo soviético. Ambos pressupõem que o crescimento material é o
objetivo final da atividade humana. Aí está a essência de seu caráter anacrônico. Os
avanços da informática permitiram a coleta de um volume extraordinário de evidências
sobre a psicologia e os componentes do bem-estar. A relação entre renda e bem-estar só é
claramente positiva até um nível relativamente baixo de renda, capaz de atender às
necessidades básicas da vida. A partir daí, o aumento do bem-estar está associado ao que
se pode chamar de qualidade de vida, cujos elementos fundamentais são o tempo com a
família e os amigos, o sentido de comunidade e confiança nos concidadãos, a saúde e a
ausência de estresse emocional.
• Os estudos da moderna psicologia comprovam aquilo que de uma forma ou de outra, mais
ou menos conscientemente, intuímos todos: nossa insaciabilidade de bens materiais advém
do fato de que o bem-estar que nos trazem é efêmero. Para manter a sensação de bem-
estar, precisamos de mais e novas aquisições. O consumismo material tem elementos
parecidos com o do uso de substâncias entorpecentes que causam dependência física e
psicológica.
• No mundo todo, a população parece já ter intuído a exaustão do modelo consumista do
século XX, mas ainda não encontrou nas esferas da política tradicional a capacidade de
participar da formulação das alternativas. Apegada a fórmulas feitas, a política continua
pautada pelos temas e objetivos de um mundo que não corresponde mais à realidade de
hoje. As grandes propostas totalizantes já não fazem sentido. O nacionalismo, a obsessão
com o crescimento material, a ênfase no consumo supérfluo, os grandes embates
ideológicos, temas que dominaram a política nos últimos dois séculos, perderam
importância. Hoje, o que importa são questões concretas, relativas ao cotidiano, questões
de eficiência administrativa para garantir a qualidade de vida.
• É significativo que os protestos no Brasil tenham começado com a reivindicação do passe
livre nos transportes públicos urbanos. A questão da mobilidade nas grandes metrópoles é
paradigmática da exaustão do modelo produtivista-consumista. A indústria automobilística
foi o pilar da industrialização desenvolvimentista e o automóvel o símbolo supremo da
aspiração consumista. O inferno do trânsito nas grandes cidades, que se agrava quanto
mais bem-sucedido é o projeto desenvolvimentista, é a expressão máxima da completa
inviabilidade de prosseguir sem uma revisão profunda de objetivos. Ao que parece, a
sociedade intuiu a falência do projeto do século passado antes que o Estado e aqueles que
deveriam representá-la - governo e oposição, Executivo, Legislativo e imprensa – tenham
se dado conta de que hoje trabalham com objetivos anacrônicos.
• A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser catalizadora de uma mudança profunda
de rumo, que abra o caminho para um novo desenvolvimento, não mais baseado
exclusivamente no crescimento do consumo material, mas na qualidade de vida. Para isso,
é preciso que surjam lideranças capazes de exprimir, formular e executar o novo
desenvolvimento.
(André Lara Resende, economista)
Este texto foi apresentado ontem na Festa Literária de Paraty (Flip), em debate com o
filósofo Marcos Nobre.
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