Quando o homem desce
• O Brasil talvez seja o único país do mundo onde uma pessoa condenada pelos crimes de
corrupção e formação de quadrilha, por decisão do mais alto tribunal da República, assume no
Congresso Nacional o cargo de deputado federal, podendo atuar na elaboração de leis. Meu
Deus, qual será a validade dessas leis que vierem a ter o autógrafo de José Genoino?
• É vergonhoso, humilhante, afrontoso verificar que isso acontece logo depois de o Senado ter
dado um pé no traseiro de Demóstenes Torres, em face da suspeita de envolvimento criminoso
do então senador com o contraventor Carlinhos Cachoeira. Os crimes praticados por José
Genoino, e que levaram à sua condenação, são muito mais graves, de tal forma que sua posse
na Câmara dos Deputados equivale a chicotear a República e a negar o Estado de Direito, pelo
qual a Nação tanto lutou. É um ato vergonhoso que mancha definitivamente a biografia do
agora parlamentar.
• Não percebe esse político que sua presença no Congresso será um prato cheio para seus
adversários? A qualquer palavra que diga, sempre alguém o lembrará de que é uma pessoa
condenada por corrupção e formação de quadrilha. Isso certamente atingirá não somente a sua
pessoa, mas também o partido político do qual foi presidente, e até mesmo o País.
• Quando ocorria o seu julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, por haver atuado, como
presidente do Partido dos Trabalhadores, no avanço em dinheiro público para farta distribuição a
amigos e aliados políticos, a ministra Cármen Lúcia, que o julgava, procurou deixar claro que
não estava julgando uma biografia, mas, sim, casos concretos de corrupção e formação de
quadrilha.
• A menção feita à biografia resulta da reputação que Genoino incorporou à sua carreira
política como combatente armado na luta contra o regime militar implantado no Brasil em março
de 1964. Naquela época, certamente com patriotismo, mas sem maior inteligência e com
fragilíssima estratégia, jovens sem experiência lançaram-se a uma luta de poucas armas
exatamente contra a única instituição que detinha o poderio bélico.
• Sob o ardor da juventude, assaltaram bancos, dinamitaram cofres para resgatar dinheiro e
chegaram ao exagero de sequestrar o embaixador dos Estados Unidos e a jogar uma poderosa
bomba sobre o quartel do II Exército, em São Paulo, fazendo em pedaços o infeliz soldado Mário
Kozel Filho, de 18 anos, que ali estava de sentinela.
• Essas ações de confronto representaram para os detentores do poder os melhores argumentos
de que necessitavam para não devolver o poder aos civis. Na 2.ª Seção do II Exército, onde
atuava o serviço secreto militar, seguiam-se reuniões sempre com o mesmo desfecho: Como
devolver o poder a esse bando de loucos?
• Aquela juventude armada, à qual nunca se negou coragem, teve como integrante e
participante, além de José Genoino, uma estudante de nome Dilma Rousseff, agora presidente
da República. O movimento pendular da História é sempre surpreendente e serve para mostrar
que no Chile, no Brasil e no Uruguai os guerrilheiros de anos atrás, que lutaram contra as
ditaduras, chegaram ao poder não pela violência, mas pelo voto (e já no poder - isso é incrível -
não se mostraram muito diferentes daqueles a quem haviam combatido).
• No caso especial do Brasil, a reconquista do poder pelos civis veio a ocorrer não pelo ardor
juvenil que levou à violência e à luta armada.
O poder foi reconquistado por força de atos de inteligência e boa estratégia demonstrados por
homens nada violentos como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Mário Covas e
tantos outros.
• Esses políticos, que até hoje fazem muita falta, pareceram adotar o estilo de Gandhi quando
resolveu opor-se ao domínio britânico na Índia, fazendo uso, tão somente, da não violência e da
não cooperação.
• Esse movimento, a que Gandhi dava o nome de Satyagraha, procurava mostrar a força da
verdade e da ausência de medo. Exatamente por não encontrarem como combatê-lo, os
britânicos acabaram pegando os seus chapéus, os seus tacos de golfe e voltaram para a
Inglaterra.
• No Brasil, a devolução do poder aos civis também veio a ocorrer, mas sempre com muita
tensão. Poucas pessoas têm conhecimento das dificuldades, dos esforços e das cobranças que o
então governador paulista Paulo Egydio Martins fazia ao presidente Ernesto Geisel para que
promovesse uma abertura política que, mesmo lenta, avançasse progressiva e irreversivelmente.
Sem o uso de bombas, ou de armas, enfim, o País aos poucos voltou a ter eleições, mas, por
lamentáveis falhas dos eleitores, repetidamente são eleitas pessoas destituídas do necessário
preparo.
• Isso acontece desde os tempos do Brasil colônia, quando o satírico Gregório de Matos, em
seus versos, dizia: Quem sobe a alto lugar, que não merece,/ homem sobe, asno vai, burro
parece,/ que o subir é desgraça muitas vezes. E ele completava que melhor é ser homem em
baixo, do que burro em cima.
• A biografia de José Genoino, objeto de admiração por seus seguidores de partido, não
mereceria ter esse complemento vergonhoso, porque a contamina por inteiro. A sua posse no
Congresso Nacional representa praticamente a anulação de eficácia da Lei da Ficha Limpa,
conquista nacional.
• Realmente, alguns milhares de políticos não puderam sequer disputar cargos eletivos pelo
fato de suas biografias estarem ornamentadas por ilícitos administrativos e por delitos. Alguns
prefeitos eleitos nem ao menos puderam assumir seus cargos em razão desses vícios não aceitos
pela referida lei.
• A posse de Genoino desmoraliza a Lei da Ficha Limpa e certamente servirá de paradigma para
que outros condenados, sem os seus direitos políticos, assim como ele, também possam tomar
posse. É triste ter de assistir a mais esse espetáculo de desprezo à inteligência das pessoas.
(Aloísio de Toledo César, Desembargador aposentado do TJSP)
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