27 de set. de 2011

Bandidagem agrária

• Conheci o Zé Rainha em 1995. Parecia um líder verdadeiro, expoente da infantaria do MST. Tempos  idealistas. Depois começou sua degradação moral. Agora, preso por corrupção, revela o lado obscuro da reforma agrária brasileira.
• Alto, magro, parecido com Antônio Conselheiro, messiânico que comandou a resistência de Canudos, Rainha procurou-me no Incra para ajudá-lo a implantar um polo agroindustrial nas terras do Pontal do Paranapanema paulista. Ousado, o projeto fazia sentido. Financiamento de R$ 3,8 milhões atenderia 1.600 famílias assentadas na Gleba XV, em Teodoro Sampaio (SP).
• Assim nasceu a Cooperativa de Comercialização e Prestação de Serviços (Cocamp). Além das instalações físicas, novos recursos permitiram ainda a compra de 42 tratores e vários caminhões, frota com a qual o líder barbudo desfilou pelas ruas da cidade cantando sua glória. Depois vieram o laticínio, as balanças e dois enormes silos de cereais. Tudo somado, R$ 8,5 milhões irrigaram essa boa ideia da reforma agrária cooperativada.
• Passou um tempo. Em 1997, novamente recebi Zé Rainha em meu gabinete, agora na Secretaria de Agricultura paulista. Voluptuoso, demandava mais recursos, do governo do Estado, para sua obra.
• Propunha arrematar uma fecularia de mandioca perto de Presidente Prudente. Nesse momento comecei a desconfiar do seu caráter.
• Primeiro, porque sabia que a cooperativa mal engatinhava. Acusações sobre sumidouro de recursos surgiam entre os assentados. Colocar mais dinheiro lá seria temerário. Segundo, sua conversa beirava uma negociação esdrúxula: se o financiamento fosse concedido, ele daria uma maneirada nas invasões de terras. Senão iria radicalizar o conflito contra os proprietários rurais. Chantagem pura.
• Quem já negociou conflito agrário sabe que assim opera a pragmática política do MST. A questão, todavia, não era apenas política, mas envolvia dinheiro público. Resumo da história: jamais vingou aquele projeto agroindustrial. Os tratores desapareceram, as máquinas industriais nunca funcionaram. A anunciada redenção da reforma agrária virou um elefante branco. Sumiu a dinheirama.
• Fotos e relatos obtidos dos próprios assentados, que desgraçadamente se tornaram solidários nas dívidas contraídas pelo delirante líder, foram publicadas em meu livro O Carma da Terra no Brasil (2004).
• Nele mostrei que a gula do Zé Rainha não era uma exceção. Expus também o projeto da Fazenda Rio Branco, em Parauapebas (PA), outro vergonhoso fracasso. Triste mistura de incompetência e malandragem na reforma agrária.
• A dita esquerda recebeu meus escritos com desdém semelhante ao externado por Gilberto Carvalho, ministro com assento no Palácio do Planalto. Ele lamentou a prisão do Zé Rainha, dizendo que ela tumultua o processo da reforma agrária e atrapalha o relacionamento do governo com os movimentos sociais. Misturou alhos com bugalhos.
• O descaminho da reforma agrária brasileira começou no início da década de 1990, quando o MST optou por invadir propriedades rurais. Foices e facões forçavam a desapropriação de fazendas pelo Incra. A novata entidade buscava com sua beligerância assumir o protagonismo da luta camponesa no País, até então entregue à velha Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Com tradição comunista, esta se acomodara nos meandros do poder.
• Apoiado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelo PT, o MST avançou ferozmente na luta pela terra. Militarmente organizados, fartos em recursos, os invasores ganharam a mídia e encantaram a opinião pública. O inegável sucesso de sua estratégia política, porém, gerou o imponderável: as quadrilhas rurais.
• Os neorrevolucionários abriram brechas para que, em vários cantos do País, bandoleiros disfarçados de sem-terra partissem para saquear e depredar fazendas. Roubo de gado, tratores e arames de cerca, fogo, moradores feitos reféns, barbaridades escondidas sob o mantra da justiça social. Verdadeira bandidagem.
• O MST, de início, aproveitou-se dessa brutalidade para expandir os seus domínios, especialmente no Pará. Imiscuiu-se com essa criminalidade alimentada pela miséria e estimulada pelo caos fundiário.
• Mordeu, porém, do próprio veneno: gerou internamente a beligerância.
• Nesse caldo de cultura que alimenta a violência rural, Zé Rainha projetou-se.
• O passado condena. Fugido de Pedro Canário (ES), onde enfrentava a Justiça por antigo crime de assassinato, o carismático Zé Rainha foi útil ao MST no Pontal do Paranapanema. Brilhou na televisão. Até romper com o comando central do movimento, partindo para sua carreira solo. Prostituiu-se, acabou proscrito.
• Os infames vos enganaram, bradou Demóstenes, recriminando os combalidos atenienses quando estes, equivocadamente, socorreram Plutarco nas guerras da antiga Grécia. Milhares de pessoas esperançosas, no Pontal do Paranapanema como alhures, seguiram o discurso fácil e fantasioso da terra prometida, como se entrassem na fila do passaporte para a felicidade.
• Zé Rainha, além de corrupto, comandou a perniciosa fábrica de sem-terra montada País afora pelo MST e seus congêneres. Nela boias-frias e desempregados urbanos se misturam com ambulantes, domésticas, tarefeiros, prostitutas, pessoas de bem e oportunistas, todos interessados no lote dadivoso da reforma agrária. Basta montar um barraco na beira da estrada e recolher um pedágio mensal, espécie de taxa da ilusão. Até trombar com a dura realidade.
• As utopias movem o mundo. As farsas, porém, desgraçam a História. Executar um processo de reforma agrária e criar novos agricultores exige planejamento, capacitação, idealismo. Nenhum desses elementos mora na cadeia onde dorme Zé Rainha. (Xico Graziano, O Estado de S.Paulo, junho2011)
* Agrônomo, foi Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

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